20 de abril de 2010

No encalço do carbono

artigo de José Eli da Veiga

"A responsabilidade por emissões de CO2 dos países da OCDE aumentaria em um quinto se o critério fosse consumo em vez de produção"

José Eli da Veiga é professor titular da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA/USP). Artigo publicado no "Valor Econômico":

Uma das maiores aberrações do Protocolo de Kyoto foi a legitimação de uma espécie de totalitarismo produtivista. Desde 1997, a responsabilidade de cada nação pelo aumento do aquecimento global vem sendo exclusivamente avaliada pelas emissões de gases estufa de seu sistema produtivo, com cinco subdivisões estranhamente chamadas de "setores": 1) energia, 2) processos industriais, 3) agropecuária, 4) mudança no uso da terra e florestas, 5) tratamento de resíduos. É exatamente assim que têm sido organizados os inventários de emissões e remoções antrópicas.

Ao menos dois problemas muito sérios foram criados por essa regra que provavelmente não será revista devido ao bem conhecido fenômeno da inércia institucional. Problemas de natureza eminentemente ética, como são, aliás, 90% das questões econômicas.

O primeiro só será aqui mencionado com rápido exemplo: a responsabilidade pelas crescentes emissões de metano da pecuária deve ser atribuída aos boiadeiros ou à pletora carnívora da multidão de consumidores abastados que, felizmente, não para de aumentar?

O segundo, bem mais singelo, é que o Protocolo solenemente ignorou a existência do comércio internacional. Uma questão que até poderia ser pouco relevante se não houvesse discrepância significativa entre as quantidades de emissões contidas nas importações e exportações de cada país. Isto é, se fossem equilibrados os balanços de emissões embutidas no comércio internacional (BEET, na sigla em inglês).

Todavia, além da histórica heterogeneidade decorrente da "divisão internacional do trabalho", o próprio Protocolo contribuiu para o aumento das disparidades ao obrigar apenas países de industrialização mais antiga a reduzir suas emissões de gases de efeito estufa.

Foram assim criadas duas distorções das mais funestas. Por um lado, o incentivo para que sejam consolidados e promovidos os modos de consumo das sociedades mais ricas, por mais influência que eles possam ter no aquecimento global. Por outro, o estímulo para que as atividades produtivas mais intensivas em carbono tendam a migrar para países sem restrições de emissão, um efeito logo cunhado de vazamento de carbono (carbon leakage).

Não é fácil apresentar evidências empíricas robustas que confirmem os estragos já provocados por esses dois tipos de estímulo. Até porque a União Europeia não demorou em alterar as regras de seu mercado de carbono (EU-ETS) com o objetivo explícito de inibir esses vazamentos em setores como os de ferro, aço e cimento. Mesmo assim, já existe razoável número de estudos que permitem ao menos ilustrar as injustiças socioambientais causadas pelo aumento das importações pelos países centrais de produtos de alto teor de carbono provenientes de países emergentes e periféricos.

É verdade que, só aumentaria um quinto a responsabilidade por emissões de dióxido de carbono (CO2) dos países da OCDE se o critério fosse consumo em vez de produção. Mas essa é uma diferença que se concentra em meia dúzia de nações. Em 2000, as emissões de CO2 do consumo no Reino Unido eram 37% superiores às da produção. Na França 35%, na Itália 30%, no Japão 27%, na Alemanha 18% e nos EUA 15%.

Evidentemente, eram as emissões de CO2 contidas nas exportações líquidas do resto do mundo que fechavam essa conta. E ainda mais concentradas, pois apenas dois países tinham déficits de grandezas semelhantes: a Rússia com -39% e a China com -13%.

Todavia, é preciso ressaltar que, além de não considerarem outros gases estufa importantes, como metano e óxido nitroso, esses cálculos não incluem as emissões de desmatamentos e queimadas, classificadas como "Setor mudança no uso da terra e florestas". O que inviabiliza o uso de resultados obtidos para nações altamente florestais, como Brasil e Indonésia. Basta lembrar que no Brasil apenas 24% das emissões de CO2 de 2005 eram provenientes dos "demais setores", e que mesmo para o conjunto dos gases estufa essa proporção não passava de 42%.

De qualquer forma, a responsabilidade da China pelas emissões de CO2 em 2006 poderia diminuir 30% se o critério fosse consumo em vez de produção. Essa foi a conclusão de uma pesquisa específica publicada na excelente coletânea "The Economics and Politics of Climate Change", organizada por Dieter Helm e Cameron Hepburn (Oxford U.P., 2009).

Mais: a taxa de crescimento anual das emissões chinesas de CO2 no período 2001-2006 não seria de 12,5%, e sim de 8,7%. O que levou os autores a concluir que o aumento de emissões na transição do país para uma sociedade de consumo não estaria sendo superior, mas sim inferior, à taxa média de crescimento da renda real.

O mais interessante, contudo, é que, além de estimativas sobre emissões de carbono contidas no import-export, a abordagem baseada no consumo também começa a ter seu desdobramento natural no cálculo das pegadas de carbono ("carbon footprint"). Em 2001, todos os países centrais tiveram pegadas per capita superiores a 10 toneladas em equivalentes de dióxido de carbono (tCO2 e/p). Mais do que o dobro no Canadá, na Austrália e em Cingapura. E o triplo nos EUA, em Hong Kong e em Luxemburgo. No extremo oposto, a pegada per capita ficou próxima de apenas uma tonelada em países muito pobres, como o Malaui, Uganda, Moçambique e Bangladesh.

Seguir essas pegadas também leva a algumas descobertas surpreendentes sobre as responsabilidades nacionais. Nem um pouco sobre o maior vilão, os EUA, com seus quase 8 milhões t CO2. Mas sim sobre o fato de a pegada da China ser metade da americana, e as da Índia e do Japão menos de um quarto.

Como não foram incluídas as emissões dos desmatamentos, o Brasil só surgia em nono lugar, com menos de um décimo da pegada americana. E com menos que Rússia, Alemanha, Reino Unido e França. (cf. E.G. Hertwich & G.P. Peters, "Carbon Footprint of Nations ", Environ. Sci. Technol. 2009, 43, 6414-6420). No entanto, se essa pegada se aproximasse dos mais de 2 milhões t CO2 reveladas pelo inventário nacional divulgado no final de 2009, o Brasil correria o risco de ocupar o terceiro lugar, entre a China e a Índia.

(Valor Econômico, 20/4)

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