23 de dezembro de 2010

Ciencias no Brasil

Ponto de maturidade

 
"Num curto período, o Brasil organizou um sistema que contribui significativamente para a evolução do conhecimento científico. Chegou a hora de a ciência contribuir de maneira expressiva para a evolução do Brasil"

Marcos Antonio Raupp é presidente da SBPC e diretor geral do Parque Tecnológico de São José dos Campos. Foi diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e do Laboratório Nacional de Computação Científica. Artigo publicado na "Carta Capital":

Diferentemente de seus antecessores, o próximo governo federal poderá contar com um recurso de excepcionais qualidades para auxiliar o Brasil a dinamizar e robustecer sua economia. Refiro-me à possibilidade, absolutamente real, de a ciência vir a se tornar protagonista do desenvolvimento sustentável brasileiro.

Não se trata de proposta inovadora, mas sim de um fato que a sociedade brasileira deve estar ciente, especialmente os governantes que tomarão posse em janeiro próximo, com destaque para a presidente da República.

A ciência, ao lado da educação de qualidade, desde sempre foi um dos protagonistas do crescimento econômico dos países do Primeiro Mundo, experiência que vem se replicando com êxito também naqueles cujo curso do desenvolvimento é mais acelerado do que o nosso, como Coreia do Sul, Cingapura, China e Finlândia. A exemplo do que ocorre nesses países, já é possível que também no Brasil a política e a economia dialoguem mais com a ciência.

Essa possibilidade não ocorreu antes, em nosso país, por razões compreensíveis. A ciência é uma atividade recente no Brasil: começou a ser feita de uma maneira organizada, porém timidamente, há pouco mais de 70 anos. Impulso significativo ocorreu apenas nos anos 1950, com a criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), e na década de 1960, com a instituição da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). São Paulo inaugurou seu subsistema de amparo à pesquisa em 1962, mas foi seguido pelos demais estados somente duas décadas depois, num processo que abrange hoje quase todas as unidades da federação.

A nossa pós-graduação, instrumento universal para a formação de pesquisadores, surgiu timidamente em meados da década de 1940 e ganhou impulso vigoroso vinte anos depois. Por sua vez, a atividade de pesquisa foi associada ao ensino superior - ou seja, como prática obrigatória nas universidades - em 1961.

O nosso sistema universitário também é de construção recente. Nos moldes atuais, surgiu na década de 1930 e teve sua expansão a partir da segunda metade do século passado. Hoje há universidades federais em todos os estados, sendo que muitos deles contam também com subsistemas próprios. No universo científico brasileiro apenas os institutos de pesquisa, mesmo que tenham surgido ainda no século 19, não tiveram ainda a atenção merecida.

Apesar de sua juventude e de percalços naturais em qualquer processo, o ponto fundamental é que o Brasil conta hoje com um amplo e dinâmico sistema de produção científica. Temos em atividade cerca de 230 mil pesquisadores, cujo trabalho - mais de 30 mil artigos por ano, publicados em revistas internacionais - representa 2,7% da produção científica mundial e coloca o Brasil em 13º lugar no ranking do setor. Para se ter uma idéia da expansão vivida pelo sistema, em 1990 nossos pesquisadores publicaram 3.539 artigos de reconhecimento internacional, o equivalente a 0,63% da produção mundial. Hoje o Brasil produz mais ciência do que a Rússia e a Holanda, países com maior tradição nessa atividade.

Outro parâmetro da evolução: em 2009 o Brasil titulou 11.368 doutores, 134% a mais do que dez anos antes (4.853 em 1999).

É esse o sistema que o Brasil construiu - e que agora deve dar sua contrapartida para a sociedade brasileira. Não apenas por uma questão ética ou dever moral, mas também porque o desenvolvimento econômico no mundo atual não pode prescindir da contribuição da ciência. O atendimento aos pré-requisitos da nova economia - competitividade e sustentabilidade - só é possível com o uso intensivo do conhecimento científico.

Assim, no campo da ciência e tecnologia o novo governo recebe um benefício e um desafio. O benefício é herdar de seus antecessores um sistema de produção cientifica maduro e dinâmico, porém com viés essencialmente acadêmico. O desafio é ampliar o espectro desse sistema, com a definição de modelos para a transferência do conhecimento da base científica para os setores industriais e de serviços, bem como para a produção de ciência e tecnologia com viés empresarial, visando à geração de riqueza.

De antemão, é preciso ficar claro que transferir os saberes da ciência para o setor produtivo empresarial não é função ou competência da universidade. O papel fundamental da instituição universitária é a formação de recursos humanos para a sociedade, além da realização de pesquisa científica que contribua para a evolução do conhecimento em suas mais diferentes áreas. Em resumo, a universidade tem de estar sempre pronta para interagir com os grandes desafios do pensamento e promover a geração de novos conhecimentos.

Precisamos, portanto, de mecanismos específicos para a intermediação do conhecimento científico com o sistema produtivo. O aspecto positivo para superar esse desafio é que temos no Brasil algumas experiências extremamente exitosas a serem consideradas, nos campos do agronegócio, do petróleo e da aeronáutica.

Nossa agropecuária é responsável por quase um quarto do PIB brasileiro e em 2009 respondeu por 42% de nossas exportações. As pesquisas realizadas pela Embrapa estão literalmente na raiz dessa riqueza.

Na evolução da indústria aeronáutica desponta a Embraer, mas há por trás uma cadeia composta por centenas de pequenas e médias empresas, muitas delas com o desafio de inovar permanentemente para poderem atender um setor dotado de altíssima intensidade tecnológica. É sabido que a Embraer teve como berços o Centro Técnico Aeroespacial e o Instituto Tecnológico de Aeronáutica.

No petróleo, criamos a Petrobras, mas o que a fez uma vencedora constante de desafios cada vez maiores foi o seu Centro de Pesquisas, o Cenpes, e uma rede universitária associada. Foi por meio do conhecimento gerado nessa estrutura que a Petrobras se tornou a empresa líder mundial na exploração de petróleo em águas profundas, fazendo gerar também uma infinidade de empresas de pequeno e médio porte baseadas no desenvolvimento tecnológico e na inovação.

Esses exemplos mostram que tivemos grande êxito quando fizemos esforços para a integração da base científica e tecnológica com setores econômicos. E um dos fatores determinantes para esse êxito foi a utilização de mecanismos adequados, quais sejam, centros de pesquisa criados com finalidades específicas e desafios pré-definidos.

Para cumprir sua missão, esses centros de pesquisa - sem a obrigação de ensinar, como ocorre com as universidades - dispõem das condições ideais necessárias: podem se utilizar do conhecimento já existente, adaptando-o para uma finalidade específica; podem gerar novos conhecimentos, para atender demandas pré-definidas; estarão aptos a desenvolver novas tecnologias; isentos de obrigações acadêmicas, têm flexibilidade para se adaptar ao ambiente produtivo empresarial.

Temos certo, portanto, é que os centros federais de pesquisa já existentes (a maioria com a denominação de institutos de pesquisa) sejam fortalecidos e tenham seu foco de estudo, seus objetivos e seu financiamento redefinidos em conformidade com as dimensões do campo em que vão atuar e dos desafios que terão de enfrentar.

Da mesma forma, será fundamental a criação de novos institutos de pesquisa, igualmente dotados das condições para a realização de grandes projetos mobilizadores, capazes de criar novas e vigorosas vertentes na economia nacional. Fármacos e medicamentos, energia e microeletrônica são alguns dos setores nos quais o Brasil poderia empenhar grandes esforços visando à criação de parques industriais fundamentados na utilização de tecnologias inovadoras geradas aqui mesmo.

O desenvolvimento de tecnologias que possibilite a exploração sustentável de nossos recursos naturais, a exemplo da Amazônia e da plataforma continental marítima, também caberia como desafio para centros de pesquisa dedicados a grandes temas.

Por esse modelo, o agente público e o privado atuariam como parceiros; o público não será cliente do privado, nem inversamente. Ambos trabalhariam em conjunto. Vale salientar também que esses centros não substituiriam a missão específica de cada empresa em realizar suas atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D). Eles atuarão na fase pré-competitiva, gerando conhecimento científico e tecnológico que servirá de base às atividades de P&D das empresas, para que elas possam apresentar ao mercado produtos, serviços e processos inovadores.

Uma vez que estarão comprometidos com o desenvolvimento do país, ou seja, com o nosso futuro, esses centros poderão desempenhar papel estratégico na economia brasileira, antevendo tendências tecnológicas e ajudando a colocar o Brasil no caminho do futuro.

Com esse conjunto de atributos e objetivos, esses centros de pesquisa serão um vigoroso instrumento de política pública para a ciência e tecnologia; serão uma forma de participação do governo no esforço de tornar o Brasil um país com alto desenvolvimento tecnológico; e serão também um indutor da inovação tecnológica nas empresas.

Num curto período, o Brasil organizou um sistema que contribui significativamente para a evolução do conhecimento científico. Chegou a hora de a ciência contribuir de maneira expressiva para a evolução do Brasil.
(Carta Capital, 17/12)

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