28 de agosto de 2011

De arma do crime esquecida pela perícia até provas jogadas fora MPs não têm acesso regular a sistemas das secretarias de Segurança


Dom, 28 de Agosto de 2011.
O GLOBO | O PAÍS


Alessandra Duarte, Carolina Benevides, Flávio Freire e Odilon Rios
opais@oglobo.com.br

RIO, SÃO PAULO e MACEIÓ. Jean nunca se chamou Jean, assim como Aldo não foi batizado de Aldo. Tampouco Adimar nasceu com esse nome. Foragidos da Justiça, eles falsificaram documentação para viver tranquilamente num estado diferente de onde cometeram crimes pelos quais não pagaram. E mais: tiveram chance de cometer outros. Em abril de 2010, dois irmãos adolescentes foram mortos a pancadas, depois de estuprados por Jean Passos Moreno.

O crime foi em Rondônia. Quando o assassino foi preso, a polícia descobriu que Jean se chamava Jessé, e era foragido há dois anos no Acre, onde foi condenado a 30 anos de prisão por estupro. — Se o criminoso trocou a identidade, nada impede que ele leve vida normal se não tiver alguém ou uma situação que o denuncie — diz o chefe interino da Divisão de Vigilância e Captura (Decap) de São Paulo, Renato Marcos Porto, também delegado titular da Polinter paulista. O precário sistema de informações entre as polícias colaborou ainda para que outra tragédia acontecesse.

Foragido da cidade baiana de Serra Dourada desde 2000, o pedreiro Ademar Jesus da Silva trocou a grafia de seu nome — passou a se chamar Adimar — para viver tranquilamente na cidade de Luiziânia, em Goiás. Foi lá que ele abusou e matou seis jovens no ano passado. Ademar morava na cidade goiana há mais de dois anos, e ninguém nunca desconfiou do seu passado, até ele ser preso. Falhas na perícia são outro obstáculo. Em São Paulo, a microempresária Cristina Conceição Magalhães foi morta a facadas em casa, no Jardim Orly.

Sete peritos do Instituto de Criminalística chegaram ao local dez horas depois de os vizinhos terem encontrado o corpo. Ficaram na casa por duas horas, mas quando os familiares puderam entrar tiveram uma surpresa: a faca que pode ter sido usada no crime estava debaixo da cama, assim como a blusa usada pela vítima, manchada de sangue e com perfurações, e um luva com a qual peritos teriam coletado provas.

— Não dá para acreditar que a perícia deixou para trás a arma do crime — diz Cleonice Magalhães, irmã da vítima.

Sistema eletrônico unindo MPs ainda será criado

Em Alagoas, estado mais violento do Brasil, segundo o Mapa da Violência, lacunas na perícia também prejudicam as investigações. Em junho, um lençol de criança amarrado ao corpo da vítima e suas roupas eram as principais provas, tanto da defesa quanto da acusação, para um crime que chocou o estado: após sair da faculdade, a estudante Giovanna Tenório apareceu morta num canavial. Alegando não ter lugar para guardar o material, a direção do IML jogou as provas no lixo.

— O trabalho do MP deve ser casado com o da polícia. Se os laudos tiverem falhas, toda a investigação sai comprometida — diz o promotor Flávio Gomes, do Núcleo de Direitos Humanos. Não são só as polícias que não conversam entre si. As polícias civil e militar também não têm sistema de troca de dados, por exemplo, com o Ministério Público daquele estado.

O primeiro estado em que o MP terá acesso ao sistema de informações da Secretaria estadual de Segurança vai ser o Rio. Isso deverá acontecer ainda este ano, diz o procuradorgeral de Justiça do estado, Cláudio Soares Lopes, vice-presidente do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

Há cerca de quatro meses, o CNMP aprovou a criação de um sistema eletrônico único para tentar resolver outra lacuna: não haver um mesmo sistema eletrônico integrando os MPs de todos os estados — apesar de crimes como roubo de carga e tráfico de drogas, armas e pessoas não respeitarem fronteiras.

Hoje, um início do diálogo entre MPs existe por meio do Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas (Gncoc), parte do CNMP, que coloca promotores de vários estados em contato. — A falta de informação leva a situações como a que vimos este ano na CPI do Tráfico de Armas no Rio: a PF do Rio cadastra hoje roubos de armas de 2004, e há 150 mil armas apreendidas num depósito da Polícia Civil que o Exército não sabia que existiam — diz o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ). — Integração de dados é essencial para qualquer área. ■

REGINA MIKI
‘País ainda não tem política de segurança’


● Secretária nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, Regina Miki admite lacunas nos registros de segurança e adianta detalhes do sistema de criminalidade anunciado pelo ministro José Eduardo Cardozo.

O GLOBO: Como será o índice de criminalidade anunciado pelo ministro?

REGINA MIKI: Estamos planejando um sistema nacional, com dados de todos os estados. A primeira dificuldade é padronizar os registros de ocorrência, porque cada estado faz de um modo. Por que usamos dados de 2008 no Mapa da Violência? Porque os dados padronizados que temos são do SUS, então pegamos emprestado dele. Mas você acaba fazendo uma política hoje com dados de 2008, é gravíssimo. A segunda dificuldade é o gerenciamento: o dado não é nosso, a gente depende de cada estado. Por isso, estamos desenvolvendo um software captador de dados, para que ele busque nos sistemas de cada estado os dados que nos interessam, em vez de criarmos mais um cadastro para o policial de cada estado preencher.

● Quando o software começa a operar?

REGINA: Isso ainda está em gestação. Mas sem dúvida toda a base de tecnologia da rede InfoSeg seria aproveitada. Queremos que o software esteja em teste até o fim deste ano.

● Se os estados não são obrigados a mandar dados para a InfoSeg, como garantir que se integrarão ao novo sistema?

REGINA: Realmente não há essa obrigação, e é a razão pela qual ainda temos lacunas na alimentação de informações. Na InfoSeg, há estados que deixaram de alimentar (a rede) por um ano. Mas é preciso se criar um mecanismo de indução, para que os estados tenham de mandar esses dados. Os estados têm de entender que os queremos como parceiros; que queremos os dados não para criar um ranking de locais mais violentos que os prejudique, e, sim, para saber para onde é mais necessário enviar recursos, para que o estado atinja determinada meta de combate à violência.

● Como seria essa “indução” aos estados?

REGINA: Condicionando o recebimento de repasses federais ao envio, pelo estado, desses dados. Pode ser repasse do Fundo Nacional de Segurança Pública, do Pronasci. Estamos articulando isso.

● Hoje não há lista nacional de foragidos ou desaparecidos. Como fazer segurança assim?

REGINA:
Respondo com outra pergunta: como está a criminalidade no Brasil? É só você ver. É por essas lacunas que o país ainda não tem uma política de Estado de segurança.

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