30 de janeiro de 2012

Economia X iNsustentabilidade: Mundo digital montado na exploração

30 de Janeiro, O Globo
Produtos como Kindles, games, iPads e iPhones são montados em condições de trabalho deploráveis


André Machado amachado@oglobo.com.br


A indústria de tecnologia parece hoje ter o toque de Midas. Na semana passada, a Apple novamente chegou a passar a Exxon como empresa mais valiosa do mundo, ostentando ativos de US$418,8 bilhões (sua receita em 2011 foi de US$46,33 bilhões). A venda de tablets de todos os "sabores" cresceu 260% no ano, chegando a 66,9 milhões de unidades (incluindo 26,8 milhões de tablets Android e 15,43 milhões de iPads no último trimestre), segundo a Strategy Analytics. E até os PCs continuaram vendendo bem: foram 352,4 milhões de computadores pessoais vendidos em 2011 contra 346,8 em 2010, apontou o IDC. Finalmente, dados da União Internacional de Telecomunicações(UIT) revelam que agora há quase 6 bilhões de celulares no mundo - uma penetração de 87% na população global.
Até aí, tudo bem. A questão é: se vivemos mergulhados numa moderníssima "iEconomia" - termo cunhado pelo "New York Times" em recente série de reportagens sobre os bastidores da Apple, que revolucionou o mundo techie com o trio iPad, iPhone e iPod - por outro lado toda a sofisticação parece se apoiar numa cama de pregos. A maioria dos gadgets que nos maravilham diariamente é montada na China e arredores, em fábricas com condições de trabalho tirânicas.
Só a taiwanesa Foxconn, que acaba de ser habilitada pelo governo brasileiro e terá incentivos fiscais para fabricar o iPad no país, responde por 40% da montagem de eletroeletrônicos de consumo do mundo inteiro.
Funcionários dormem em fábricas
A Foxconn tem um exército de 920 mil empregados, boa parte ganhando menos de US$17 por dia, segundo dados do "NYT". Muito dessa força de trabalho dorme em alojamentos dentro das sedes da Foxconn, ficando disponível 24 horas por dia - são 210 mil só em Shenzhen. Entre outros gadgets, a companhia monta o iPad e o iPhone, da Apple; o console de games Xbox 360, da Microsoft; o e-reader Kindle, da Amazon; o console Wii, da Nintendo; e o PlayStation 3, da Sony. Sem falar de placas de vídeo da Nvidia e placas mãe de computadores com modelos para processadores Intel e AMD. Ainda segundo o "NYT", outras integradoras asiáticas terceirizadas por HP, IBM, Lenovo, Nokia, Motorola e Toshiba também apresentam condições subumanas de trabalho. A Apple faz entre 200 e 300 auditorias por ano nas fábricas chinesas, mas os direitos trabalhistas continuam sendo violados.
"Tentamos melhorar as coisas", disse ao jornal americano um ex-executivo da Apple. "Mas muita gente ainda ficaria perturbada se visse de onde seu iPhone vem."
O outsourcing, ou terceirização de operações, não é algo novo e é usado por todo tipo de indústria, mas no caso da tecnologia, dada a urgência por inovação, ele criou uma economia com dinâmica própria, em que a mão de obra, nos países emergentes, sofre com condições de trabalho extenuantes. Volta e meia se ouvem relatos de acidentes graves, maus-tratos e suicídios (houve pelo menos 14 só em 2010) nas fábricas da Foxconn. Recentemente, aliás, ocorreu uma ameaça de suicídio coletivo em meio a uma negociação salarial na unidade de Wuhan, na China. Questionada sobre as polêmicas condições de trabalho e longos turnos de mais de 12 horas em suas fábricas na China, uma porta-voz da Foxconn no Brasil não quis se pronunciar. Ela explicou que, segundo a "tradição asiática de discrição", seus executivos não comentam o assunto.
O consumo consciente e a responsabilidade social, tão evocados quando se fala de meio ambiente, ainda estão longe de abordar com eficácia essa dicotomia social. Se, na última Conferência Mundial de Outsourcing, na Flórida, 57% das empresas de 40 países ouvidas afirmaram pensar sempre ou frequentemente na responsabilidade social quando decidiam terceirizar operações, outros 43% afirmaram refletir sobre o assunto às vezes (23%), raramente (13%) ou nunca (7%).
- O consumidor precisa ficar mais consciente, tanto do ponto de vista da sustentabilidade ecológica quanto da corporativa, que prevê boas condições de trabalho - afirma Joana Varon, pesquisadora do Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da Fundação Getulio Vargas (FGV).
De acordo com Manuel Fernandes, sócio da consultoria KPMG no Brasil e líder da área de Tecnologia, Mídia eTelecomunicações, há ações no Brasil e nas empresas de reciclagem e redução do lixo eletrônico, mas a parte social ainda é incipiente.
- Essa questão da produção é complexa e não atinge só a TI. Produtoras de artigos esportivos já foram acusadas de usar trabalho escravo - lembra Fernandes. - A terceirização busca naturalmente a mão de obra barata na Índia ou na China. É preciso haver mais campanhas para conscientizar o consumidor. E o Brasil pode se beneficiar da responsabilidade social. Embora exista a carga tributária, o "custo Brasil", temos uma economia mais transparente e respeito aos contratos e aos direitos trabalhistas.
A chave para a mudança desse quadro está mesmo nas mãos do consumidor, afirma Bruno Magrani, professor e pesquisador do CTS.
- Os consumidores têm poder para pressionar as empresas em direção às melhores práticas, às práticas em que acreditam - afirma.- E a responsabilidade social, o respeito aos direitos do trabalho, pode trazer mais ganhos para companhia. Entretanto, uma das barreiras para o consumo consciente é que muitas vezes os produtos cujos processos respeitam a sustentabilidade social ou ecológica ficam mais caros. E aí o bolso fala mais alto.
Magrani lembra ainda que, se por um lado o administrador de uma empresa tem a obrigação de gerar lucro para os acionistas, por outro isso não pode ser obtido sem ética.
- A questão vai além do social.
Dependência ocidental é risco
Antonio Kleber de Araújo, empresário e especialista em gerenciamento do conhecimento, lembra a dependência crescente que os países desenvolvidos, hoje em crise econômica, têm dos mercados emergentes, principalmente os asiáticos.
- Os consumidores hoje estão dependentes das ferramentas de comunicação e produtividade de seus iPhones, iPads e congêneres - afirma. - Quanto tempo resistiríamos sem cortar os pulsos se perdêssemos definitivamente celular e agenda nessa sociedade em rede que construímos? Como em toda revolução, as primeiras "vítimas" são as que ficam no calor da batalha, nas "linhas de fogo da produção", mas a longo prazo, numa estratégia lenta e gradual, bem à moda chinesa, as novas vítimas serão as economias ocidentais, transformadas em reféns dessa dependência.
E isso tudo sem falar das 50 milhões de toneladas de lixo eletrônico jogadas fora no mundo anualmente.
COLABOROU Melissa Cruz

Nenhum comentário:

Postar um comentário