29 de janeiro de 2012

Salman Khan

Com simplicidade e entusiasmo, o jovem matemático americano Salman Khan já deu mais de 115 milhões de aulas na rede e começa a revolucionar a velha e enfadonha rotina escolar
MONICA WEINBERG DE MOUNTAIN VIEW
A voz de tenor do matemático americano Salman Khan, ou Sal, atrai gente de todo o mundo à rede por um motivo que costuma afastar as pessoas. Ele dá aulas. Pela turma que o segue - uma classe virtual de mais de 4 milhões de alunos que assistiram a 115 milhões de lições até a última sexta-feira, já que o número aumenta a cada segundo -, não há dúvida de que Sal, 35 anos, se tornou um raro fenômeno educacional dentro e fora da internet. Com 2700 vídeos e exercícios gratuitos sobre mais de quarenta áreas do conhecimento, ele traduz em linguagem simples desde os rudimentos da matemática até as guerras napoleonicas e as finanças de uma fábrica de bolinhos. Entre seus seguidores, estão os três filhos de Bill Gates e o próprio fundador da Microsoft, que, ao perceber que o site (www.khanacademy.org) despertava em sua prole entusiasmo pelos estudos, chamou Sal para um encontro. Descobriram-se almas gêmeas. Os dois estavam lendo O Guia de Química Orgânica para Completos Idiotas e compartilhavam a mesma acidez na crítica à escola. Diante de tão ilustre interlocutor, Khan tremeu: "Só pensava: 'Esse cara é Gates-Gates-Gates. Não posso falhar!'". Foi surpreendido pelo bilionário: "Seu site pode dar início a uma revolução". Recebeu ainda uma doação de 1,5 milhão de dólares e ganhou visibilidade. Seu nome circula hoje nas grandes rodas de especialistas em educação, meio no qual Salman Khan se sente ainda uma espécie de intruso.
Formado em matemática, ciências da computação e engenharia elétrica pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e egresso de um fundo de investimentos, Sal afixou nas paredes de seu, digamos, escritório cartazes que traduzem o jeitão pouco erudito, mas direto, de pensar o ensino: "Vá à essência do problema", "Nunca deixe de aprender", "Divirta-se!". Tomado de livros de ficção científica e brinquedinhos como o cubo mágico, seu QG está instalado no 2° andar de uma casa em cujo térreo funciona uma loja de chá, na cidade de Mountain View, na Califórnia. A 5 quilômetros dali fica o Google. Na mesa onde Sal trabalha, veem-se volumes de macroeconomia, material para a próxima aula e seu inseparável equipamento de trabalho - um tablet conectado a um PC, uma câmera e uma caneta digital com a qual ele desenha os gráficos e símbolos que ilustram as entusiasmadas explanações de até vinte minutos de duração. Seu rosto jamais vem à luz. Sal acha que assim fica menos professoral. Em nome da naturalidade, ele nunca edita os vídeos, daí os frequentes improvisos, como o toque de telefone soando no meio da gravação. Se não gosta do resultado, Sal refaz tudo. Ele diz, do mesmo modo direto e enérgico que o celebrizou como professor: "Sonho alto. Meu objetivo é oferecer conhecimento de nível elevado sobre absolutamente tudo, e de graça".
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"Nunca me diverti tanto"
Rodeado de livros de ficção cientifica e manuseando um cubo mágico, Salman Khan falou a Monica Weinberg, de VEJA, no quarto da casa em que grava até dez videos por dia, em Mountain View, na Califórnia
Por que trocou o mercado financeiro pela educação? Descobri que as aulas me divertiam e desafiavam intelectualmente como nenhum outro emprego que tive no Vale do Silício. Vi que levava jeito quando meus seguidores foram se multiplicando na rede. Pensei: "Já tenho dois Hondas na garagem e uma boa casa. Vou largar o trabalho e colocar esse negócio de pé com minhas economias".
O apoio de Bill Gates foi decisivo? Gates não só me deu dinheiro como visibilidade. Quando nos encontramos pela primeira vez, no escritório dele, estávamos lendo o mesmo livro - O Guia de Química Orgânica para Completos idiotas. Pensamos de maneira muito parecida. Somos dois entusiasmados defensores da investigação científica e da educação de qualidade.
Como um matemático consegue dar aulas sobre Revolução Francesa e diabetes? Leio de tudo, converso com especialistas, estudo sem parar. Sou figura conhecida nas livrarias de Mountain View. Só me aventuro a gravar os vídeos quando entendo o assunto a ponto de traduzi-lo para uma criança de 7 anos. As vezes erro, mas é raro, e o deslize nunca fica no ar por muito tempo.
Seus críticos dizem que suas aulas são tradicionais demais._ Uma ala de especialistas acredita que a criança só aprende matemática se descobrir cada princípio por si mesma. Bobagem. Isaac Newton jamais teria inventado o cálculo sem antes mergulhar nos livros de álgebra, certo? Ao privarem os estudantes dos fundamentos e conceitos, certas escolas estão é formando gerações de analfabetos para os números. Na área do ensino, na qual sou uma espécie de intruso, há muita gente que prefere se guiar pelas próprias ideologias a render-se às evidências e à razão.
Recentemente seu método começou a ser implantado em salas de aula. O senhor acredita que pode revolucionar a escola? Sinceramente, não tenho essa pretensão. O que eu quero é tomar a experiência escolar mais prazerosa e eficaz, duas coisas que ela não é. Os vídeos podem ajudar, assim como os exercícios que proponho, em que as crianças se sentem como num jogo, sendo premiadas e promovidas de nível pelo bom desempenho. Os professores têm como acompanhar a atuação de cada um individualmente e saber em que ponto da escala os alunos estão, ajudando a todos de forma mais personalizada.Tenho cabeça de matemático. Gosto de traduzir todos os fenômenos em números.
Não é um choque de culturas nas escolas? Sem dúvida. A princípio, as que estão trabalhando conosco se espantaram com o software, como se esse tipo de ferramenta para medir desempenho já não fosse aplicado há décadas no mundo corporativo. E olhe que estamos falando de um grupo de colégios bafejados pela mentalidade inovadora do Vale do Silício. Felizmente, a experiência está dando certo.
Há milhares de professores dando aulas na rede. Como o senhor tem vencido a concorrência? Muitos por ai substituem conteúdo por show. Há outros que são até muito bons mas dão uma aula chata, arrastada, interminável. Acho que consegui aliar um bom conteúdo ao ritmo da rede. Passo meu recado, em média, em dez minutos.
Seu site não tem fins lucrativos. Pensa em torná-lo um negócio? Não. Adoro lucro, dinheiro e não tem nada de religioso em minha posição. Só que não aceito ficar refém da opinião de investidores ou governantes, sob o risco de virar mais um na rede e desfigurar meu site. Conto com mais doações generosas de gente como Gates ou do pessoal do Google.
Quantos vídeos o senhor ainda pretende produzir? O máximo que conseguir ao longo de minha existência. Por isso, sou absolutamente neurótico com meu tempo. Gravo até dez vídeos por dia. Minha meta é que gente do mundo inteiro possa aprender de tudo sem pagar nada na Khan Academy.
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Há quem identifique em seu estilo traços do típico profissional de cursinho pré-vestibular, mas essa é certamente uma simplificação do fenômeno Salman Khan. Ainda que não haja pesquisas já consolidadas sobre o impacto de sua "academia" no ensino, a experiência sugere que a iniciativa pode vir a tornar-se uma poderosa ferramenta para transformar a maneira como as pessoas aprendem e a própria escola. Há seis meses, sob a supervisão de sua equipe - uma turma de jovens vinda de bancos de investimento e consultorias -, os vídeos e exercícios que sugere no site começaram a ser adotados em quinze escolas da Califórnia. Em alguns desses colégios, a rotina mudou de forma radical. Os alunos passaram a assistir às aulas de Sal em casa, deixando o tempo na escola livre para problemas, dúvidas e projetos que estimulem a capacidade criativa e a investigação científica. "Com um conteúdo de tão alto nível na rede, essa inversão faz todo o sentido", avalia o economista Claudio de Moura Castro, especialista em educação e articulista de VEJA.
Evidentemente não estamos diante de uma solução mágica para que a escola de hoje, estacionada no modelo de dois séculos atrás, se torne um lugar mais dinâmico e afinado com as verdadeiras demandas do século XXI. Não existe tecnologia que resolva esse abismo sozinha, por mais engenhosa que seja, sem um professor bem preparado para tirar proveito dela em prol do ensino. Boa parte dos programas que se propõem a levar laptops às salas de aula, inclusive no Brasil, tem redundado em fracasso. O site de Sal aponta um caminho para revirar a chatice e inovar. "Ele abre espaço para que o foco na escola se transfira para a solução de problemas, algo essencial para o mundo em que vivemos", costuma dizer o americano Carl Wieman. Prêmio Nobel de Física.
Outra mudança nos colégios que usam o método Khan diz respeito a algo que, em típico linguajar do mundo corporativo, Sal (assim como Gates) chama de "customização" do ensino. Dois geniozinhos da computação de sua equipe criaram um software que permite aos professores monitorar os vídeos a que cada criança assistiu e seu desempenho nos problemas, situando os alu nos em uma escala de proficiência, um termometro que permite reconhecer e premiar talentos - como Sal adora. Conta Suney Pärk, 38 anos; professora de uma escola em East Palò Alto, vizinha a Mountain View:"Consigo socorrer imediatamente os que estão com di ficuldade e dar tarefas ambiciosas para que os melhores deslanchem". Mais de 6000 salas de aula do mundo inteiro já adotam a cartilha Khan em algum grau. No Brasil um grupo de professores começará a ser treinado ainda neste mês para levar os vídeos e os exercícios de Sal a três escolas da rede municipal de São Paulo, projeto piloto financiado pela Fundação Lemann. "Sabemos que com os métodos tradicionais dificil mente conseguiremos oferecer um ensino mais personalizado a todos com a urgência de que precisamos", diz Denis Mizne, diretor executivo da fundação, que também está patrocinando, junto à Intel, a dublagem dos vídeos para o portugnês (www.fundacaolemanniorg br/ khanportugues, na rede a partir deste sábado). Foi duro achar um profissional coin voz e estilo que lembrassem minimamente os de Khan.
Os que desacreditam do método Khan sustentam que suas aulas, exibidas em uma reprodução digital dalousa preta, o antigo "quadro-negro", reforçam a velha fórmula expositiva de sempre sem derramar luz sobre o debate que interessa - revolucionar as escolas. Uma ala mais suicida de construtivistas, a mesma que costuma desprezar solenemente o que a ciência vem descortinando sobre como aprendemos (veja a reportagem na pág. 72); clama . por uma sala de aula dominada pela experimentação, na qual o aluno dita as regras antes mesmo de ser apresentado aos conceitos mais básicos: Nenhum aprendizado superaria o da própria vivência, defende esse pessoal. Segundo esse raciocínio, o astronauta Neil Armstrong, o primeiro homem a pisar na Lua, teria de ter voltado da viagem ao satélite natural da .Terra transformado no maior especialista de todos os tempos nas ciências aeroespaciais. E um rematado absurdo. O alemão Wernher von Braun (1912-1977), o pai do programa espacial americano, não perdia a chance de rebater os elogios a seus feitos com a informação de que o homem chegou à Lua com base nos cálculos de Johannes Kepler, o descobridor da órbita elíptica dos planetas, que viveu quase 400 anos antes de todos os envolvidos no projeto lunar americano, um tempo em que só os pássaros voavam.
A experiência de Salman Khan tem servido de inspiração. Um de seus seguidores no Brasil, o estudante de engenharia do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) Thiago Feijão, 22 anos, abriu recentemente um arnbicioso site educativo na internet, batizado de Quadrado Mágico. Está em plena produção de 500 vídeos de matemática que vão ao ar ainda neste mês. "Khan é meu mestre", resume Thiago.
Criado pela mãe, imigrante da Índia, Sal estava em trajetória ascendente no mercado financeiro quando deu o primeiro passo rumo à Khan Academy, em 2004. Uma prima lhe pediu ajuda nos estudos de matemática. Como a menina morava em Nova Orleans e ele em Boston, Sal passou a colocar vídeos no YouTube e completar a aula via celular. Um dia, a prima o surpreendeu: "Não precisa mais ligar. Você é muito melhor no computador". Aquela altura, Sal já contava com centenas de seguidores. Em 2009, com o apoio integral da mulher, a médica Umamia, com quem tem dois filhos, ele largou o emprego e passou a viver das economias. Sal sustenta seu negócio com doações milionárias desembolsadas por seus colegas do Vale do Silício - entre eles Reed Hastings, um dos fundadores da Netflix, com quem ele costuma fazer caminhadas pelas ruas de Mountain View, cujos moradores são alguns dos poucos que conhecem também o rosto da voz que milhões escutam quando querem aprender alguma coisa.
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A CIÊNCIA DIVERTIDA
Em um ambiente ruidoso e tomado por chips e placas robóticas, o brasileiro Paulo Blikstein, 39 anos, produz inventos para a aula de ciências pelos quais passou a ser conhecido e cortejado no meio acadêmico mundial. Não são grandes inovações tecnológicas, mas experimentos bastante simples que o colocam em posição de destaque. Na Universidade Stanford, onde comanda desde 2009 um laboratório com 25 pessoas, Blikstein cria maquininhas como um sensor que a criança leva para casa para acoplar à roda da bicileta. Ele captura e armazena dados que serão o ponto de partida para ensinar os conceitos de velocidade, tração e aceleração. "Não há outra saída para despertar o interesse pelas ciências senão aproximá-las do dia a dia", diz Blikstein. Seu maior desafio é encontrar soluções que permitam replicar as experiêr cias em grande escala, a preço inferior ao de um livro escolar. Formado em engenharia e um dos mais respeitados especialistas em tecnologias aplicadas à educação, Blikstein já foi chamado para levar seus experimentos a países como Senegal, México, Tailândia e Rússia. Atualmente, dez escolas americanas fazem fila para receber laboratórios de alto nível, sob a consultoria do brasileiro. Vivendo nos Estados Unidos há doze anos, ele acaba de ser laureado com o Early Career Award, da National Science Foundation (NSF), o prêmio de maior prestígio concedido a jovens docentes. Em breve, começará a treinar sessenta professores para que façam trabalho parecido no Brasil. Iniciativa mais do que bem-vinda em um país em que as aulas de ciências são tão temidas quanto odiadas.

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