20 de abril de 2012

As duas mortes da TV Cultura


JORGE DA CUNHA LIMA
TENDÊNCIAS/DEBATES, Folha de São Paulo

É preciso manter a autonomia. Além disso, é suicídio imitar a TV comercial, valorizando demais audiência. TV pública não pode baixar o seu nível
Em artigo no jornal "O Estado de S. Paulo", Almir Pazzianoto nos adverte sobre o risco de uma decisão judicial transformar a TV Cultura em uma repartição pública.
Isso desvirtuará a vontade fundadora: uma instituição capaz de gerir melhor televisões públicas, exatamente por ser privada, com autonomia administrativa, financeira e intelectual. Essa morte anunciada de fora destrói o caráter da instituição, que é a equidistância do poder e do mercado.
A segunda morte vem de dentro: a falta de compreensão da missão da instituição e o constante desvirtuamento de sua natureza jurídica. Definida pelo conselho, sua missão é "promover a formação crítica do telespectador para o exercício da cidadania, a partir de uma programação educativa, cultural e informativa, com a devida consulta à vontade do espectador".
Isso exige uma programação capaz de zelar pelo bem cultural e social da comunidade, priorizar interesses públicos e manter distanciamento dos modelos e interesses do mercado e do poder. Trabalhamos na área do mercado, mas não nos subordinamos aos seus predicados.
Ninguém é idiota de não querer audiência. No mundo saxônico, audiência é número, quantidade. Na Europa, principalmente na França, audiência é medida sociológica: satisfação dos interesses sociais de um segmento da programação, critério esse que serve melhor à televisão pública. A demasiada preocupação numérica com audiência é farisaica e falsa. Os números, se torturados, mentem.
Imitar a estratégia da programação comercial sem os seus recursos é suicídio garantido e comprovado. A televisão pública vende programação, não pode baixar de nível para criar o valor inútil, pois não tem finalidade lucrativa. Na televisão pública, o que não tem a mediação da inteligência não produz formação crítica.
A TV precisa fidelizar o público a partir da estabilidade. Os bons programas tradicionais, como "Metrópole", "Vitrine", "Ensaio", "Roda Viva", "Entrelinhas", "Jornal da Cultura", "Mesa Redonda", "Grandes Momentos do Esporte" e "Repórter Eco" deveriam ser aperfeiçoados, não substituídos a cada três meses.
Há espaço, na grade, para outras inovações, mas não há renovação sem a preservação dos talentos de uma emissora.
Televisão pública precisa de prestigio, coisa que a TV Cultura tinha para dar e vender.
Ganhamos, em passado recente, todos os prêmios nacionais e internacionais, inclusive alguns Emmy.
Se não precisamos inventar a "Roda Viva", muito menos precisamos reinventar a roda. As linhas de força de uma televisão pública são duas: programação infantil e informação.
Infelizmente, em 40 anos, só produzimos três programas infantis notáveis: "Mundo da Lua", "Rá-Tim-Bum" e "Cocoricó". Mas já divulgamos, com orçamentos menores do que o de hoje, seis programas jornalísticos, para melhor compreensão das notícias, da informática, da ecologia, da ciência e das artes e dos espetáculos.
Há uma tendência de dizer que precisamos acabar com a velharia. Pois continuo preferindo um velho lúcido a um idiota atlético.
A TV Cultura tem um modelo jurídico exemplar, desejado por todas as televisões públicas brasileiras. É uma fundação de direito privado, criada pelo poder público, que se obrigou, por lei, a promover a sua manutenção. Possui um conselho gestor independente, capaz de eleger e demitir o presidente-executivo e seus membros eletivos, que é o único responsável pela eleição de seu presidente. O conselho é responsável direto pela missão da instituição.
O endividamento não deve ser politizado nem pode ser pretexto para a morte do nosso espírito, pois seria a morte dos melhores conteúdos de nossa infância e dos maiores desafios do cidadão adulto.
JORGE DA CUNHA LIMA, 80, jornalista, escritor e poeta, é presidente do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta, da Aliança Francesa e vice-presidente do Itaú Cultural

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