25 de abril de 2012

O último exame de Frida Kahlo


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Depois de estudar a vida da pintora mexicana, patologista espanhol conclui que ela sofria da síndrome de Asherman e por isso não conseguia ter filhos 


Paloma Oliveto



No quadro Hospital Henry Ford, produzido depois de ter outra gravidez interrompida, pintora deu nome ao filho perdido: Dieguito (www.wikipaintings.org/Reprodução da internet)
No quadro Hospital Henry Ford, produzido depois de ter outra gravidez interrompida, pintora deu nome ao filho perdido: Dieguito
Brasília – Com cores vibrantes e pinceladas firmes, Frida Kahlo pintou a sua dor. Tendo no próprio sofrimento o principal modelo vivo, a artista mexicana criou um acervo autobiográfico, que revela as angústias físicas e psíquicas de uma mulher que parecia destinada ao tormento. Espinha bífida, poliomielite, fraturas provocadas por um acidente gravíssimo e neuropatias foram alguns dos males que afligiram Frida, morta de embolia pulmonar decorrente de uma pneumonia em 1954, uma semana depois de completar 47 anos.

A história da pintora sempre impressionou Fernando Antelo, patologista cirúrgico do Centro Médico da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. O olhar do médico é atraído por desenhos anatômicos nas pinturas de Frida, um detalhe que, segundo ele, não costuma ser muito estudado por biógrafos da artista. Apesar de a mexicana ter se matriculado em medicina na Escola Nacional Preparatória da Universidade do México, curso que não chegou a concluir devido ao acidente sofrido, Antelo não vê nas obras o trabalho de um anatomista, mas sim de um paciente querendo, desesperadamente, falar sobre suas dores. “Ela parece querer apontar: ‘Veja, é aqui, aqui, aqui e ali que estou sofrendo’”, afirma.
A coluna quebrada despertou em Antelo o interesse pela obra de Frida (portalseteartes.blogspot.com/Reprodução da Internet)
A coluna quebrada despertou em Antelo o interesse pela obra de Frida

Antero quis ouvir Frida. Estudou atentamente suas pinturas e concluiu que a “paciente” era portadora de uma síndrome que, de acordo com ele, foi responsável por sua infertilidade, problema que levou a pintora a uma depressão profunda, pois ela não escondia que um de seus sonhos era ser mãe – tema frequente em suas telas.

Em uma palestra apresentada no último domingo, durante a Conferência 2012 de Biologia Experimental, nos Estados Unidos, o médico diagnosticou Frida Kahlo como portadora da síndrome de Asherman. Descrita em 1894, a enfermidade é caracterizada por cicatrizes no útero, surgidas depois de abortos ou intervenções cirúrgicas. Espontaneamente, Frida perdeu vários fetos e passou por pelo menos duas antecipações terapêuticas do parto. Na primeira vez, a criança estava em posição incorreta, provavelmente em decorrência da deformidade na pélvis da artista. O segundo ocorreu no Hospital Henry Ford, de Detroit, inspirando uma tela que leva o nome da instituição de saúde. A artista batizou intimamente a criança não nascida: Dieguito, homenagem ao muralista Diego Rivera, seu marido. 

“Quando médicos resolvem estudar Frida Kahlo, geralmente se focam nos problemas de coluna, que, de fato, foram gravíssimos. Poucos, porém, procuram entender o que fez de Frida uma mulher infértil, algo que foi um verdadeiro tormento em sua vida”, afirma Antelo. Para ele, a mexicana adquiriu a síndrome no acidente entre um ônibus e um bonde, quando uma barra metálica atravessou seu abdômen. De acordo com o médico, além da ossatura, órgãos internos foram atingidos, dando origem às cicatrizes no útero. 

“Na maioria das mulheres que têm a doença, ela é decorrente da curetagem da cavidade uterina, do uso de métodos anticoncepcionais como o DIU ou mesmo de cesárias”, relata Antelo. “No caso de Frida, porém, como sabemos que o ferro penetrou a região abdominal quando ela ainda era uma adolescente, o endométrio provavelmente ficou danificado, e as cicatrizes eram consequência disso”, diz o médico, citando que algumas das manifestações, além do aborto, são dores e alterações do ciclo menstrual. O patologista afirma que o desespero pela maternidade não impediu que Frida engravidasse outras vezes. “Mesmo com um útero que de forma alguma poderia suportar uma gravidez bem-sucedida, ela tentou, em vão, dar vida à Dieguito.”

Difícil diagnóstico De acordo com Mats Brännström, pesquisador da Universidade de Sahlgrenska, na Suécia, e especialista em síndrome de Asherman, hoje não é impossível para uma mulher engravidar mesmo sendo portadora da síndrome. “A extensão e a localização da cicatriz são fatores importantes para o prognóstico. Para receber a luz verde do médico e tentar conceber, é importante que pelo menos 90% do útero esteja livre das cicatrizes antes de tentar engravidar. Ressalte-se que algumas mulheres conseguem levar a gestação a cabo mesmo quando o útero ainda exibe cicatrizes, mas essa não é a regra”, aponta. 

 
A artista, em foto de 1932, no Instituto de Arte de Detroit: vida marcada pelo sofrimento físico e existencial (portalseteartes.blogspot.com/Reprodução da Internet )
A artista, em foto de 1932, no Instituto de Arte de Detroit: vida marcada pelo sofrimento físico e existencial

O especialista sueco conta que existe tratamento para a síndrome, que pode ser curada por pequenas intervenções cirúrgicas e, posteriormente, medicamentos hormonais. “O problema, ainda, é que a síndrome é subdiagnosticada. Muitas mulheres passam a vida toda tentando engravidar e sofrem múltiplos abortos sem que se saiba exatamente a causa. Os médicos precisam levar em consideração a síndrome de Asherman, cujo diagnóstico se faz com exames por imagem”, afirma.

Fernando Antelo concorda com o colega sueco e diz que decidiu usar o exemplo de Frida Kahlo para fazer esse alerta. Como o estudo de caso desperta curiosidade, já que se trata do diagnóstico de uma ilustre paciente, morta há meio século, ele acredita que sua teoria poderá chamar a atenção. Não foi só por isso, contudo, que Antelo decidiu “aceitar Frida Kahlo como paciente”. Ele mesmo sofreu um acidente de carro que o deixou com muitas dores na coluna. “Você acaba se solidarizando com a expressão de um sofrimento que conhece. Claro que, no meu caso, um sofrimento muito menor que o experimentado por Frida”, explica. Ele conta que a imagem da pintora que mais o impressiona é a tela A coluna quebrada, pintado depois de uma das cirurgias pelas quais a mexicana passou, na qual ela retrata o aparato usado pelos médicos no pós-operatório. 

O patologista cirúrgico esclarece que, apesar dos indícios, não se pode dizer, categoricamente, que Frida Kahlo não podia ter filhos por causa da síndrome. “Alguns biógrafos oferecem outras explicações, como problemas sanguíneos que levariam a uma incompatibilidade com o feto”, diz. “Todo médico, porém, precisa avaliar o histórico dos pacientes, sendo que cada aspecto conta. Temos um detalhe – não sei se podemos chamar assim, dado à gravidade –, que é o acidente e a informação de que o abdômen de Frida foi perfurado. Acredito, portanto, que temos um forte elemento que justifica a ideia que elaborei”, argumenta.

Fraturas 
Quando Frida tinha 18 anos, o ônibus em que estava se chocou com um bonde e a atingiu gravemente. Ela teve ferimentos e fraturas na coluna, na pélvis, nos ombros e nos pés. Uma barra de ferro atravessou seu abdômen. Ao longo da vida, a artista se submeteu a 35 cirurgias.

"Pomba" inclassificável 


Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderón nasceu na Cidade do Médico, em 1907. Era a terceira de quatro filhos e vivia com a família na Casa Azul (hoje um museu), no subúrbio de Coyacán. Seu pai, Guillermo, era um distinto fotógrafo, interessado nas tradicionais festas mexicanas. A mãe, Matilde, tinha personalidade forte e religiosidade extrema. A relação de Frida com o pai foi próxima e intensa. Com ele, a pintora se familiarizou com a fotografia e o mundo da arte. Uma das poucas mulheres que tentaram ingressar na universidade, a artista conheceu o grande amor de sua vida, o muralista Diego Rivera, em 1922, quando ele pintava o primeiro mural da carreira, no Anfiteatro Simón Bolívar, na Escola Nacional Preparatória. Com Rivera, Frida vivenciou uma relação turbulenta, marcada por extremos. Eles casaram-se quando ela tinha 22 anos e ele 42. 


Frida e Diego se separaram, mas voltaram a se unir apesar dos amantes que ambos colecionaram. Embora alguns biógrafos considerem o muralista um homem frio e grosseiro (“É o casamento de um elefante com uma pomba”, notou a mãe da pintora, quando eles anunciaram o enlace), Diego venerava a mulher. Companheiro inseparável nas horas das dores e cirurgias, ele convenceu Frida a não cometer suicídio quando ela precisou amputar a perna por causa de uma gangrena.

Uma das mais proeminentes pintoras do século 20, Frida Kahlo rejeitava rótulos. Apesar dos traços de suas telas, negava ser surrealista. Não que desdenhasse do movimento; pelo contrário, era uma admiradora. Mas afirmava que seu estilo era próprio: “Pensaram que eu era surrealista, mas não era, nunca pintei sonhos, pintava minha própria realidade”. (PO)

Fonte: Museo Frida Kahlo (www.museofridakahlo.org.mx)

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