19 de agosto de 2012

E a esquerda encontrou os pobres CELSO F. ROCHA DE BARROS


Folha de S.Paulo, 19/08/12

O governo Lula foi o encontro entre a esquerda e os muito pobres, que são mais da metade de nossa população. Os dois foram apresentados por um parente em comum, Lula, que só se reconciliou com os muito pobres ao adotar a política econômica dos muito ricos, o que o PT sempre achou esquisito e dois livros recentes de intelectuais que participaram do governo Lula ajudam a explicar.
O cientista político André Singer, ex-porta-voz de Lula, desenvolve em "Os Sentidos do Lulismo" [Companhia das Letras, 280 págs., R$ 30] os argumentos de um artigo publicado em 2009. Singer identificou um deslocamento que passou despercebido enquanto ocorria: quando o escândalo do mensalão derrubava a popularidade de Lula na classe média, de 2005 a 2006, sua aprovação subia entre os muito pobres.
O eleitorado de Lula sofreu uma subtração grande de votos de classe média e uma imensa adição de votos dos muito pobres. Até 2002, como Singer havia documentado em estudo, dava-se o contrário: Lula e o PT se saíam melhor junto a eleitores de classes mais altas e em regiões mais desenvolvidas.
Mas o que, afinal, foi o lulismo e o que explica seu sucesso? Estudos anteriores de Singer oferecem uma chave para ambas as respostas. Suas pesquisas mostravam que os muito pobres eram conservadores (por exemplo, contrários a greves), mas esperavam um Estado ativo na redução da pobreza. Essa ideologia popular era consistente: os muito pobres, ao contrário dos trabalhadores sindicalizados, não têm chance de recuperar com greve o que a inflação lhes rouba de salário; daí também sua preferência pelo combate à inflação.
Os muito pobres, por outro lado, não têm chances de melhorar de vida só pelo mercado; precisam de políticas sociais que os ajudem. Ao vencer, Lula modera o discurso, aceita o objetivo de manter a inflação baixa e muda o foco para o combate à pobreza, desesperando petistas históricos, mas virando o que os muito pobres esperavam.
Em comparação com os artigos iniciais, o livro de Singer é mais denso. Ele traz seus estudos empíricos para conversar com quem chama de "dois Franciscos": Weffort, autor de estudo clássico sobre populismo, e Oliveira, talvez o principal crítico do PT à esquerda.
Contra Oliveira, Singer diz que o "reformismo fraco" do lulismo não é "regressivo" e que seu potencial político dependerá de disputas futuras (a lamentar, aqui, só o excessivo respeito de Singer pelo programa petista dos anos 90).
E o trabalho de Weffort sobre o populismo foi a base para Singer analisar a situação em que o líder paira sobre as classes e atende a interesses populares sem pôr em risco a elite. Há vários trechos no livro sobre as "linhas de continuidade" entre varguismo e lulismo.
É preciso cuidado, porém, com analogias históricas. "Cartas ao Presidente Lula" [Azougue, 190 págs., R$ 38], de Amélia Cohn, fornece boas pistas sobre como o "subproletariado" via Lula. É uma análise das cartas de beneficiários ou aspirantes ao Bolsa Família. Um dos propósitos da obra é refutar a tese de que o Bolsa Família estabelece uma relação paternalista típica do populismo.
O livro funciona menos como refutação do que como coleção de nuances e contratendências. Se os missivistas veem em Lula qualidades excepcionais, estas se explicam pelo fato de Lula ter tido uma vida igual à deles.
Por vezes, fica claro que a relação estabelecida com Lula é a que se tem com um compadre ("Lula, meu amigo"), mas também há casos em que ele é visto como um padrinho (em um caso, como "pai"). Há casos de clientelismo clássico (pedidos de inclusão no programa em troca de votos) e de consciência cívica que fazem Kant parecer o Cachoeira ("Por favor, me tirem do programa, arrumei um emprego").
Mas fica claro que a maioria dos missivistas sabe que o que pedem é o exercício de um direito; o favor não é o Bolsa Família, mas fazer com que nossa ineficiente burocracia o implemente de forma adequada. A carta a Lula é um último recurso após longa marcha de retirantes por repartições públicas.
Singer e Cohn têm perspectivas teóricas diferentes. Ele resgata a tradição de análise com base em classes sociais; o foco dela é o acesso à cidadania. Se pensarmos no PT como partido social-democrata, formado na transição entre o fordismo (quando as classes polarizavam claramente a política) e o começo da sociedade pós-industrial (em que ganham importância temas da cidadania), combinar essas perspectivas pode ser uma boa ideia para saber como a conversa entre a esquerda e os pobres pode continuar.

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