9 de agosto de 2012

Universidade, autonomia e renovação, artigo de Jaime Santana e Lauro Morhy

 
Jaime M. Santana é doutor em Imunologia e Genética Aplicadas e professor titular do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Brasília (UnB). Lauro Morhy é doutor em Biologia Molecular, professor emérito e ex-reitor da UnB. Artigo enviado ao JC Email pelos autores.

Desde as últimas décadas do século passado o mundo globalizado desafia a humanidade com os seus novos dilemas e horizontes. Vive-se hoje uma realidade socioeconômica composta de características novas, ao lado de outras já conhecidas, formando um cenário repleto de significados e dinamismos a serem estudados e conhecidos. Este artigo, longe de pretender esgotar este assunto tão amplo e complexo, visa proporcionar subsídios e gerar questionamentos para reflexões sobre a renovação da universidade no novo quadro. É oportuno lembrar que renovação faz parte da própria essência da universidade.

A universidade, uma das mais antigas instituições sociais, em seus quase mil anos de existência, já contribuiu para mudanças importantes na história da humanidade. Exigem-se dela, também hoje, importantes contribuições para a solução dos graves problemas da atualidade, por cultivar o pensamento livre, inovador e vanguardeiro. Para que a universidade continue a cumprir sua missão de desenvolver, integrar e transmitir saberes, e formar cidadãos comprometidos com a ética e o desenvolvimento sustentável, é preciso que se renove sempre e atue com liberdade e autonomia responsáveis, fortalecendo assim o verdadeiro espírito universitário.

Não é exagero afirmar que a autonomia está na própria essência da universidade. Assim compreendendo, os países onde essa instituição mais contribuiu para o seu desenvolvimento e fortalecimento, logo implantaram a autonomia universitária. Seguindo a razão politico-estratégica da comunidade acadêmica e a experiência histórica, os nossos constituintes incluíram na Constituição Federal (CF) do Brasil, o art. 207, que estabelece: "As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão".

Assim sendo, "compreende-se autonomia como um poder de autodeterminação no âmbito da ordem jurídica democrática. A prerrogativa da autonomia confere à universidade o uso e o gozo de determinadas competências exclusivas e privativas, conferidas pela ordem jurídica do Estado" (1). Autonomia não significa independência absoluta ou soberania. No direito público, trata-se de "poder funcional derivado, circunscrito ao peculiar interesse da entidade que o detém e limitado pelo ordenamento que lhe deu causa, sem o qual ou fora do qual não existiria. (...). Sua referência não é o beneficio da própria instituição, mas sim o da sociedade" (2).

Concedendo autonomia às universidades, a sociedade brasileira, por meio da Assembléia Nacional Constituinte de 1987-88, reconheceu a importância dessas instituições como instrumento estratégico da nação brasileira, e a necessidade que têm de autonomia para cumprir o seu papel. Não deveria a lei regulamentadora, ou mesmo outra lei, e muito menos outros regulamentos, ultrapassar limites que tornassem restritiva ou sem efeito prático a autonomia que o constituinte quis estabelecer para o funcionamento pleno das universidades, visando o bem social (3).

A autonomia didático-científica deve assegurar a produção científica inovadora e a transmissão do conhecimento associadas à formação de recursos humanos, levando-se em conta os legítimos interesses sociais. Pode-se reconhecer que muitos direcionamentos regulamentadores da autonomia didático-científica, incluindo várias atividades acadêmicas, estão na Lei de Diretrizes e Bases (vide artigos 43 a 51) (3) e em outras leis e regulamentos posteriores, alguns dos quais já nasceram limitando a autonomia universitária. Mas não estão neste aspecto as maiores restrições à autonomia universitária que impedem a universidade de exercer plenamente a sua missão. As maiores restrições estão na sua administração e gestão, que sabidamente podem afetar, e afetam, de forma altamente negativa, toda a vida universitária.

As autonomias administrativa, de gestão financeira e patrimonial deveriam assegurar às universidades o planejamento próprio, a auto-normação, a auto-organização, a auto-administração e a autogestão de recursos financeiros. A diversidade existente entre as universidades, as suas missões específicas e regionais, requerem também diversidade organizacional, de estruturas administrativas e acadêmicas. A gestão de recursos financeiros pressupõe repasses regulares do governo federal para as instituições federais de ensino superior. Não há regularidade nesses repasses por razões diversas, inclusive de natureza política, e, por outro lado, os recursos gerados pela própria instituição, são apropriados pelo burocrático sistema contábil nacional, e tratados, praticamente, como se fossem concedidos pelo orçamento da União. Aqui entra em cena um poderoso sistema de controle, no qual o governo investiu muito nos últimos tempos, ao contrário do que aconteceu com o sistema executivo, que permaneceu desaparelhado sob todos os aspectos, para cumprir devidamente as exigências legais de gestão administrativa e ao mesmo tempo apoiar as respectivas instituições, nas missões para as quais elas foram criadas.

As "soluções" oferecidas foram as Fundações de Apoio e as terceirizações, ambas sob severos impedimentos e controles burocráticos e judiciais cada vez mais amedrontadores e limitadores das iniciativas universitárias, sobretudo as que envolvem interações institucionais.

Há outros dispositivos legais limitadores na própria CF e na LDB. De acordo com o caput do art. 169 da CF, "a despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderá exceder os limites estabelecidos em lei complementar". Há princípios estabelecidos na CF quanto às leis de diretrizes orçamentárias, necessidade de licitações e quanto a outros aspectos. Na LDB, além dos artigos já referidos, os de número 52 a 57 regulamentam aspectos administrativos e financeiros das universidades (3). Muitos outros dispositivos legais apareceram cada vez mais nos últimos tempos, principalmente desde os primeiros anos do século atual. A universidade brasileira, assim como os municípios, está sob a tutela do Estado brasileiro centralizador, que nunca levou em consideração as nossas diferenças regionais e culturais, e muito menos a complexa atividade universitária. Na prática, a autonomia universitária verdadeira nunca existiu de fato, e a pouca autonomia que chegou a ser concedida, vem sendo cada vez mais subtraída.

Certamente serão heréticas essas observações para gestores públicos rigorosamente engajados no sistema oficial estabelecido. Não o são, porém, para quem pensa livremente, busca caminhos inovadores e entendem que a lei é conservadora por natureza, que a burocracia a quer imutável se lhe interessa e, frequentemente, a interpreta como lhe convém. Mas, é preciso acreditar em mudanças necessárias, mesmo quando elas parecem impossíveis.

O chamado "ensino superior" - com as características que passou a apresentar a partir do século XVIII - atingiu em cheio os sistemas universitários que existiam. A crescente demanda por vagas nos cursos universitários praticamente afogou as universidades e os valores a elas ligados. Estatísticas recentes mostram grande aceleração na expansão de matrículas no ensino de graduação em todo mundo e no Brasil (3,4,5). Temos também hoje, em franca expansão a educação a distância, as universidades corporativas, os institutos de ensino técnico, os institutos de pesquisa e tantas outras formas de ensino e pesquisa. Pode-se dizer que tudo isso, e mais o avanço da democratização, são consequências do trabalho das universidades ao longo dos séculos. Afinal elas muito fizeram e fazem pelo crescimento e desenvolvimento da educação democratizada, do conhecimento e dos saberes. Foi ela então "atropelada" pelas mudanças que ela mesma produziu. Ficou tudo muito mais complexo, mas há de se encontrar soluções que aprimorem os bons resultados alcançados, identifiquem e excluam o que não for bom para os grandes interesses estratégicos nacionais e mesmo mundiais.

A execução eficiente das atividades de ensino, pesquisa e extensão, requeridas para pleno cumprimento da Missão da universidade, requer um ambiente acadêmico propício à troca de idéias, respeito à diversidade, diálogo continuado entre todos os atores e gestão transparente, moderna e altamente eficaz para atender às complexas demandas inerentes à vida universitária. Entretanto, este cenário está cada vez mais deteriorado devido à formação de grupos políticos, de atividade político-partidária e de dificuldades administrativas em todos os níveis. A partição da comunidade acadêmica resulta em ausência de diálogo e, consequentemente, criam-se anjos e demônios de acordo com as referências do momento. Neste contexto, os mecanismos de gestão da universidade, tornam-se cada vez mais inapropriados, resultando em dificuldades enormes de gerenciamento de recursos para as atividades fins da universidade: ensino, pesquisa e extensão.

Há, porém, que se examinar o cenário em que nos encontramos. Mudanças quanto à autonomia podem ser necessárias, mas, que mudanças ainda serão permitidas ou possíveis? Pode-se pensar em novos mecanismos de gestão, dentro das regras do sistema oficial? E quanto à política de pessoal e salarial? E quanto à possibilidade de autonomia dual, que propusemos no passado? No caso UnB, "a universidade de Anísio e Darcy" cabe ainda no quadro político-administrativo atual do País? A UnB quer ser apenas mais uma IFES? E quanto à FUB-Fundação Universidade de Brasília e o seu papel histórico, inclusive como mantenedora da UnB (Lei Nº3.998- art.3º A Fundação (FUB) terá por objetivo criar e manter a Universidade de Brasília, instituição de ensino superior de pesquisa e estudo em todos os ramos do saber e de divulgação científica; Art.10- A Universidade de Brasília empenhar-se-á no estudo dos problemas relacionados com o desenvolvimento econômico, social e cultural do País e, na medida da sua possibilidade, na colaboração às entidades públicas e privadas que o solicitarem")?

Não terá a sociedade substituído a universidade histórica por outro ente, que apenas chama de universidade, porque o nome é historicamente charmoso, assim como a magnificência dos seus reitores, e os títulos de doutor, mestre e especialista que elas outorgam? Ou mesmo porque, por dever legal precisam assim chamá-la? Assim sendo, será que ainda se pode resgatar a universidade livre e criadora, a universidade da verdadeira pesquisa científica, do ensino, das artes, da extensão e dos serviços competentes; aquela universidade de "alma mater", ainda que com algumas adequações ao novo panorama mundial?  Aquela casa do pesquisador, do inovador, do educador, do servidor, do estudante, do artista, do prestador de serviços à comunidade, da sociedade, aquela universidade que todos sintam que é sua e que todos dela se orgulhem não só pelo seu passado,mas, principalmente por acreditarem no seu futuro? Quando se quer, renovar é possível!

Referências Bibliográficas
(1) Sampaio, A. L. B. Autonomia Universitária. Brasília: EDUNB, 1998.
(2) Ranieri, N. Autonomia Universitária. Biblioteca de Direito. São Paulo: EDUSP, 1994.
(3) Morhy, L. Princípios e subsídios para discussão sobre a autonomia universitária. Doc.Especial Prov.-Reitoria da UnB, julho, 1999; Site: WWW.lauromorhy.com.br, 2012.
(4) Morhy,L.Universidade na Encruzilhada, ComCiência Nº40, 10/fev, 2003.
(5) Morhy, L. Universidade e Desenvolvimento Científico e Tecnológico no Brasil, p.340-362 in Lamarra, N.F. -Universidad, Sociedad e Innovacón-Uma perspectiva internacional,511 p.,Eduntref,Universidad Nacional de Tres Febrero, B.Aires, Argentina.

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