20 de outubro de 2012

Devem ser criadas cotas para negros também no serviço público?

Folha de S.Paulo, 20/10/2012

YVONNE MAGGIE
TENDÊNCIAS/DEBATES


NÃO

Legislação racial sempre tem frutos funestos
Cotas raciais, em minha opinião, são ilegítimas. A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial é uma instituição que desequilibra os princípios democráticos por entronizar a "raça", quando a única maneira de enfrentar o racismo e combatê-lo é destruir a própria ideia de "raça". Continuo advogando que o país é feito de cidadãos com direitos universais sem distinção de "raça", credo, condição social e demais atributos especificados na Constituição de 1988.
Em 2012 o STF decidiu, por unanimidade, a constitucionalidade das cotas raciais. Depois desta resolução, abriu-se a porta para que o país instituísse a "raça" como critério de distribuição de justiça.
O Congresso Nacional aprovou o Estatuto da Igualdade Racial, com a aquiescência de todos os partidos. Este, ao lado da decisão do STF, foi o passo mais radical no sentido de mudar o estatuto legal da nação. Determinaram-se aí cotas raciais em todas as esferas da vida dos cidadãos, que agora são definidos por sua "raça" com direitos diferenciados. Não somos mais brasileiros, legalmente somos negros, brancos ou indígenas.
Seguindo os ditames do Estatuto Racial, além da obrigatoriedade das cotas no ensino superior para egressos de escolas públicas com renda inferior a um salário mínimo e meio per capita e para pretos, pardos e indígenas, o governo anuncia que instituirá cotas raciais no serviço público federal, inclusive em cargos comissionados.
Quer, ainda, obrigar empresas privadas a adotarem essa política. É absolutamente transparente a intenção de afastar-se dos consagrados princípios universais que regulam a vida das nações.
Se já é triste ver o país caminhar para a racialização das políticas para o ensino superior, mais triste ainda será ver o povo brasileiro ter de lutar por vagas no mercado de trabalho segundo esse critério.
Em nome da luta contra o racismo, estão produzindo uma política de alto risco porque, historicamente, todas as vezes que um Estado legislou com base na "raça", as consequências foram funestas.
O mais estranho de tudo é saber que os EUA -que em muito influenciaram as políticas raciais aqui adotadas- se afastam cada vez mais da preferência racial na adoção de políticas públicas e enfatizam o critério social ou de classe.
Como noticiou o "The New York Times" do dia 13 de outubro, os juízes da Corte Suprema americana estão repensando a constitucionalidade das ações afirmativas.
No caso da estudante Abigail Fisher, que alega ter sido prejudicada no acesso a uma vaga na Universidade do Texas por ser branca, o argumento de seus opositores não é mais a justiça -ou seja, o tratamento desigual para aqueles que tiveram seus direitos negados por tanto tempo (os afro-americanos), pedra fundamental da política de ação afirmativa nos EUA. Passados quase 50 anos da instituição das ações afirmativas, a alegação passou a ser a necessidade de intensificar a diversidade nas salas de aula.
Porém, segundo os juízes da Corte Suprema, a verdade é que as ações afirmativas beneficiaram os mais ricos entre os afro-americanos, em detrimento dos pobres tanto brancos quanto negros. Para os juízes, elas contribuíram para o aprofundamento da separação entre os grupos de diferentes "raças", legalmente definidos em função delas.
Por isso, a Suprema Corte americana caminha para adotar critérios de classe no combate às injustiças, e não critérios raciais.
O Brasil, cego ao debate internacional, marcha célere no sentido inverso, criando leis que dividem os brasileiros. Leis que, em vez de erigir pontes e aproximar as pessoas, trazem no seu bojo o ovo da serpente da discórdia, da luta entre aqueles que se pensavam iguais.
YVONNE MAGGIE, 68, doutora em antropologia social pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), é professora titular da mesma instituição


JOSÉ VICENTE

SIM
A exclusão do negro e a negação das raças
O regime escravocrata criou um sistema para se justificar que era político, psicológico e simbólico. Ele naturalizava a desumanização e a demonização do negro.
A finalidade era garantir a segurança do regime, os lucros da acumulação, o usufruto dos privilégios e as vantagens sociais para os membros do "establishment", ou seja, o senhor branco e sua parentela.
A república instalada um ano depois da abolição não arrefeceu e não modificou, como não podia fazer, a mentalidade e a prática escravagista do senhor e do escravo.
Pelo contrário, ela reproduziu a presença do senhor branco como superior e depositário natural dos privilégios dos cargos e empregos públicos. Ela excluiu o negro, ex-escravo e inferior, da legitimidade e da possibilidade de participação na gestão e no acesso à burocracia estatal, apesar de politicamente serem os cidadãos iguais em direitos.
Enquanto o Estado se recolheu na ambiguidade da neutralidade, a elite republicana preferiu o silêncio perante o Apartheid social.
Quando não pôde calar, como na substituição da mão de obra negra pelo imigrante, tentou negar que o racismo e a discriminação contra os negros constituíam um projeto de poder e manutenção de privilégios, justamente porque éramos uma democracia racial forjada na mistura tripartida e generosa de raças.
Diante dos incontroversos indicadores sociais, negando a existência das raças, essa elite esgrimiu as desigualdades raciais como fato socioeconômico, subordinando a sua resolução exclusivamente às políticas universalistas. O acesso às oportunidades e a distribuição de vantagens deveriam ser igualizadas somente pelo mérito puro, fossem as pessoas em questão iguais ou desiguais.
Os concursos públicos envolvem testes de conhecimento linear adquirido através de preparação intensiva, à custa de pesados investimentos financeiros. As graves distorções e desigualdades sociais, econômicas, raciais e educacionais que atingem os mais pobres -70% são negros- tornam impossível uma disputa justa para o emprego público de prestígio e status relevantes.
Isso aprofunda a exclusão entre grupos e pereniza a presença dos negros no baixo escalão. O resultado é a concentração de renda em um só grupo, pervertendo os fundamentos de mobilidade e justiça social.
Justamente por isso, o emprego público relevante se tornou prisioneiro de grupos sociais fechados, tenha isso acontecido de maneira intencional ou involuntariamente.
Ele acabou dominado por um grupo com uma produção e reprodução de valores, trajetórias, históricos, estéticas e códigos de relacionamento totalmente apartados da miscigenação, sem representar os negros do país.
Acresça-se o fato de que o mérito do conhecimento e habilidade é só um lado da questão. Isso não explica o grande número de cargos comissionados sem provas ou títulos que, da mesma forma, não expressam nem contemplam nossa diversidade racial.
Por isso, são indispensáveis as cotas nos concursos públicos, principalmente naqueles de mais prestígio e remuneração, imprescindíveis para o desenvolvimento do Brasil.
Além de colocar o Estado intencionalmente ao lado dos mais desfavorecidos, elas permitirão introduzir um mecanismo de equilíbrio na distribuição das oportunidades e na expansão dos talentos individuais.
Trata-se de um verdadeiro choque de gestão para combater decisiva e corajosamente as desigualdades raciais, igualizar na partida os desiguais e promover justiça, democracia, valorização e reconhecimento da contribuição dos negros na construção, enriquecimento e grandeza do nosso país.
JOSÉ VICENTE, 53, advogado e doutor em educação pela Universidade Metodista de Piracicaba, é reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares

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