7 de outubro de 2012

Escola troca formação de cidadão pela capacitação de clientes


ENTREVISTA PAULA SIBILIA, Folha de S.Paulo,7/10/2012

PARA ANTROPÓLOGA ARGENTINA, ESTADO PERDEU CAPACIDADE DE DAR COESÃO ÀS INSTITUIÇÕES MODERNAS E A ESCOLA, COMO CONHECEMOS HOJE, PODE DESAPARECER
Carolini Pierri - 09.mai.2009/"Clarín"
A antropóloga argentina Paula Sibilia
A antropóloga argentina Paula Sibilia
ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO
O Estado perdeu sua capacidade de dar coesão às instituições modernas e o mercado amplia sua abrangência. A educação já não prioriza a formação de cidadãos, mas quer oferecer serviços a clientes, consumidores. A escola como conhecemos pode desaparecer.
A visão é da antropóloga argentina Paula Sibilia, 45, que lança amanhã no Rio o livro "Redes ou Paredes - A Escola em Tempos de Dispersão" (Contraponto). No ensaio ela faz um cáustico diagnóstico do ensino e avalia o impacto das mídias eletrônicas no aprendizado num mundo cada vez mais dispersivo e refratário à reflexão.
Para ela, "na escola deveríamos aprender a pensar".
Folha - O que é a crise da escola?
Paula Sibilia - O eixo da subjetividade está sendo deslocado. Já não nos construímos prioritariamente ao redor daquele centro interior. A definição de quem é cada um se ancora naquilo que se vê. Por isso proliferam as redes sociais, com seus perfis e sua infinidade de imagens, assim como os reality shows e os programas de fofocas na TV. A escola faz parte desse pacote.
No seu livro "Redes ou Paredes" a sra. relata o desmoronamento do modelo de escola disciplinador, que foi sendo corroído pelas "redes" que perpassam a sociedade. Por quê?
A escola se destinava a formar a mão de obra para a sociedade industrial e os bons cidadãos. Mas as crianças de hoje se apresentam como seres completos e bem definidos. São consumidores, aos quais é preciso estimular, agradar, escutar e compreender. A crise se intensificou, impulsionada pela popularização dos dispositivos móveis de conexão às redes informáticas.
A sra. conta que a educação já foi o braço armado do iluminismo. Hoje, o que é?
As transformações do mundo afetaram a escola e geraram a incompatibilidade entre nossas crianças e essa velha instituição. O Estado tem perdido sua capacidade de dar coesão e sentido às demais instituições modernas, entre elas a escola, que ficaram mais ou menos à deriva e têm urgência de se adaptarem às novas regras do jogo. O mercado tem expandido sua abrangência. O espírito empresarial vai impregnando todas as instituições, inclusive a escola. Converter as crianças de hoje nos cidadãos do amanhã não parece ser a meta prioritária de boa parte dos colégios atuais, que tentam oferecer um serviço atraente para seus clientes. Mais do que uma educação, essas instituições com inspiração empresarial procuram fornecer uma capacitação -uma série de instruções úteis que prometem a seus clientes uma inserção com sucesso no mercado laboral. É muito grave o risco de que instâncias como o mercado e a empresa assumam os papéis antes desempenhados pelo Estado.
Como a escola enfrenta essas transformações?
A capacidade de adaptação da escola é limitada. Pode chegar um momento em que não dê mais conta das mudanças e se quebre, perdendo sua eficácia e seu sentido. Assim como no passado essa instituição não existia, ela pode muito bem vir a desaparecer no futuro, ou a se transformar tão radicalmente que deva ser redefinida.
Por que a sra. aponta problemas no uso de computadores nas aulas?
A informatização das aulas costuma se apresentar como panaceia. É algo importantíssimo, mas a mera incorporação de recursos tecnológicos não vai resolver todos esses conflitos. Pode até intensificar alguns deles. Esses aparelhos não são ferramentas neutras. Eles estão carregados de valores e tendem a suscitar modos de uso e formas de vida, que se distanciam muito das regras escolares e talvez não sejam compatíveis com seu funcionamento.
Como?
Além de subverterem os usos do tempo e do espaço instituídos pelo regulamento escolar, as novas tecnologias entram em choque com um requisito básico da escola e outras instituições modernas: o confinamento. Ou seja: a ideia de que é necessário encerrar todos os sujeitos durante um determinado período em um espaço bem delimitado, todos os dias, com regulamentação. A popularização dos dispositivos móveis de comunicação promete aniquilá-la de vez. Não só ao diminuir ainda mais sua tradicional eficácia, mas também porque é capaz de deixá-la sem sentido. Para que trancar todos juntos durante várias horas por dia, entre quatro duras paredes, se cada um tem um aparelho conectado à rede? Não é uma pergunta que possa ser respondida às pressas.
A escola precisa ser divertida?
Todos concordam que aos entediados alunos é preciso oferecer diversão. É algo muito diferente do que acontecia com os oprimidos de anos atrás, aos quais era preciso emancipar por meio do conhecimento. Crianças e adultos de hoje querem aulas divertidas, não exatamente libertadoras. Isso evidencia uma mudança importante.
Como a sra. avalia a experiência de uma escola em Estocolmo que derrubou paredes de salas de aula e deu um laptop para cada aluno?
A informatização das aulas é apenas um primeiro passo, o mais fácil de dar. Há o risco de que os aparelhos se convertam num novo agente de dispersão. O problema consistirá em ensinar os alunos a lidar com eles. É preciso ter um projeto pedagógico realmente inovador, capaz de reconcentrar a atenção dos alunos na aprendizagem -que continuará a ocorrer prioritariamente entre as paredes da sala de aula. Tudo isso parece conspirar contra a plena consumação da vida em rede.
A sra. afirma que "dialogar não é educar". O que é educar?
Na escola -ou em seus eventuais sucedâneos- deveríamos aprender a pensar. Não a usar as tecnologias, ou não somente isto. Mas ensinar a pensar é muito mais difícil e tem pouco a ver com a informação e com a opinião, dois ingredientes que saturam nosso cotidiano e que imperam nas redes. Ao contrário, para poder pensar hoje é preciso cultivar certa capacidade de resistir ao fluxo constante de informações e às conexões intermitentes. Sem procurar bloqueá-las ou se isolar, mas também sem sucumbir à dispersão promovida pelas infinitas distrações nem à banalidade da opinião.
Qual sua visão do protesto que alunos do colégio Rio Branco fizeram contra o uso de câmaras nas salas?
As câmeras nos colégios parecem continuar o velho esquema da vigilância hierárquica. Costuma se apoiar na ilusão de que desse modo será possível exercer algum tipo de controle sobre hiperativos e indisciplinados. São tentativas de utilizar as redes para compensar a crise das paredes. Curioso é que essas revoltas costumam ocorrer em nome da privacidade individual -algo que as próprias redes eletrônicas estão esfacelando. Na maioria dos casos, de modo consentido e até desejado.

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