16 de outubro de 2012

O foco da Agenda Pós-2015 Por José Eli da Veiga


Valor, 16/10/2012

A promoção de políticas que reduzam as desigualdades precisa ser o foco da Agenda
pós-2015 da ONU, que terá imenso alcance histórico se realmente promover a
metamorfose dos precários Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) em
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

A erradicação da pobreza, foco dos atuais ODM, não garante redução de
desigualdades, pois tudo depende da concomitante evolução dos padrões de vida
das camadas sociais que já não eram pobres. Minimizar o número de pobres não
impede que a desigualdade de renda até aumente se forem superiores os saltos dos
demais estratos de renda. Além disso, mesmo a redução de algumas desigualdades
pode ser anulada pelo aumento de outras.

Quando se procura a resultante distributiva das recentes conquistas no âmbito da
redução da pobreza, o começo da resposta é a confirmação de que a ascensão
econômica dos Brics reduziu bastante a disparidade entre os níveis de vida de suas
populações em relação às do Norte. No início dos anos 1990, alemães ou franceses
eram 20 vezes mais ricos que os chineses ou indianos. Hoje esse hiato não chega a
dez vezes. Em decorrência, também houve formidável redução da distância entre as
faixas populacionais extremas. Isto é, entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres
do mundo. Ela diminuiu tanto quanto havia aumentado desde 1900!

Foco dos Objetivos em Desenvolvimento Sustentável precisa ser em

políticas que reduzam desigualdades

Poderia parecer, então, que uma inédita reviravolta na história da desigualdade de
renda mundial teria ocorrido nas últimas décadas. Infelizmente foi o inverso devido
à impiedosa reconcentração de renda no interior da maioria dos países. Com
raríssimas exceções - entre as quais a do Brasil - nos últimos dois ou três decênios
houve uma escalada das desigualdades domésticas, após os longos períodos de
estabilidade que seguiram as saudosas quedas de meados do século passado.

Entre 1989 e 2006 passou de 40 para 60 vezes o hiato entre os níveis de vida dos 15
países mais ricos e dos 15 mais pobres. Houve uma estagnação e até recuo dos
níveis de vida na maioria dos países pobres, especialmente nos da África, enquanto
a cada ano eles subiam 8% na China e 4% na Índia.

Em tais circunstâncias, é preciso antes de tudo priorizar a drástica elevação da
chamada Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD), que corresponde às
transferências governamentais a título de cooperação ou assistência dos países do
Norte aos mais pobres do Sul. Esse tem sido o maior esquema de redistribuição no
âmbito internacional desde o final dos anos 1940. Por mais que tenham aumentado

as transferências filantrópicas de fundações de direito privado, elas não passam de
10% da APD.

A recomendação de que os países ricos consagrassem ao menos 0,7% de sua renda a
tão crucial instrumento para a redução das desigualdades globais já havia sido feita
pela Comissão Pearson, tendo como base o balanço do período 1948-68. Todavia,
os desembolsos sempre foram bem inferiores. Giraram em torno de metade dessa
meta, graças ao alto desempenho de nações como Suécia, Noruega, Dinamarca,
Holanda e Luxemburgo, para as quais essa proporção frequentemente supera 1%.
No extremo oposto, ela nem costuma chegar a reles 0,2% nos Estados Unidos e no
Japão.

Mas a APD começou a se recuperar no início deste século graças justamente à
mobilização das Nações Unidas pelos ODM, o que permitiu que voltasse ao nível
mais frequente de 0,35%, depois de ter despencado com o fim da Guerra Fria,
quando desbotaram boa parte de seus atrativos geopolíticos.

Por isso, o debate sobre a formulação dos ODS no contexto da Agenda Pós-2015
deve dar prioridade não apenas a tornar rapidamente efetivos os 0,7% de APD
propostos pela Comissão Pearson, mas também introduzir novos mecanismos
redistributivos baseados principalmente em taxas sobre as transações
internacionais que tenham impactos ambientais negativos.

O problema é que isso só será possível se houver consenso entre os participantes
dessas negociações multilaterais de que o crescimento econômico gera muito
menos benefícios na ausência de prévia e concomitante redução das desigualdades
materiais. Infelizmente permanece muito mais comum a suposição concorrente:
que o crescimento econômico substitui a redução de desigualdades de renda, pois
enquanto há crescimento há esperança, permitindo que grandes diferenciais de
poder de compra sejam toleráveis.

Nada poderá ser mais útil, portanto, do que garantir que eles fiquem sabendo que
os países do Norte com menos desigualdade são os que sistematicamente mostram
melhor desempenho em ao menos uma dúzia de dimensões cruciais do
desenvolvimento. Em ordem alfabética: coesão social, dependências químicas,
doenças mentais, educação, encarceramentos, longevidade, mobilidade social,
obesidade, partos de adolescentes, saúde, vida comunitária e violência.

Também será fundamental avisar os negociadores dos ODS de que é nas sociedades
avançadas menos desiguais que ocorrem os mínimos de consumismo, os máximos
de reciclagem e - muito a propósito - todos os recordes de APD.

José Eli da Veiga, professor dos programas de pós-graduação do Instituto de
Relações Internacionais da USP (IRI/USP) e do Instituto de Pesquisas Ecológicas
(IPÊ), escreve mensalmente às terças-feiras. Página web: www.zeeli.pro.br

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