27 de novembro de 2012

Catar: Escola para 61 milhões





Superação. Refugiada somali, Suad, de 23 anos, hoje dirige a escola onde estudou, no Quênia


‘Nobel da Educação’.O alfabetizador indiano Chavan recebe prêmio do emir do Catar: interesse em intercâmbio com Brasil
Catar e Nações Unidas Lançam programa global para garantir educação a crianças

Sergio Pompeu, Estado de S.Paulo, 27/11/2012

Levar ensino básico para 61 milhões de crianças que estão fora da escola em todo o mundo. Essa é a ambiciosa meta do programa Educate A Child (Eduque Uma Criança), lançado oficialmente no dia 14 por um coalizão de agências das Nações Unidas, como Unesco e Unicef, e organizações não governamentais liderada pelo governo do Catar, no Golfo Pérsico.
O Brasil vai colaborar com o projeto. Os responsáveis pela iniciativa pretendem usar um software desenvolvido pelo Ministério da Educação para fazer a gestão online do programa, que estabeleceu como meta a captação de US$ 6 bilhões anuais para investimento.
Anunciado em Doha, no Catar, durante a Cúpula Mundial da Inovação em Educação (Wise), hoje o grande fórum mundial da educação, o Educate A Child pretende dar novo fôlego ao esforço para cumprir as Metas do Milênio. Assinado pelos 191 países-membros da Organização das Nações Unidas em 2000, o Metas do Milênio tem oito objetivos a serem alcançados até 2015, entre eles a erradicação da pobreza, o combate a doenças como aids e malária, a redução da mortalidade infantil e das desigualdades de gênero e o estímulo ao desenvolvimento sustentável até 2015. A meta número 2 é a oferta de ensino primário a todas as crianças do planeta.
Especialmente depois do estouro da crise financeira internacional, em 2008, a ajuda de países ricos para programas sociais despencou. Essa retração realçou o papel do Catar como grande investidor global no setor, especialmente na educação. Embora muitos especialistas já tenham jogado a toalha, afirmando que as Metas do Milênio para a educação não serão alcançadas no prazo, o Educate A Child pretende pelo menos reduzir a distância em relação aos compromissos firmados.
"Temos de firmar parcerias, ser inovadores para levar educação a áreas onde a pobreza, guerras e preconceitos privam milhões de pessoas do acesso a esse direito fundamental", disse em Doha a diretora-geral da Unesco, Irina Volkova. "O momento exige o máximo de esforço para pelo menos nos aproximar das Metas do Milênio. É uma obrigação do ponto de vista humano, moral e político."
Apesar de ter sido lançado oficialmente agora, o Educate A Child existe desde o começo do ano. Apoia projetos que já beneficiam 500 mil crianças em 17 países da Ásia e da África. A premissa é encarar a educação não só como direito fundamental, mas meio de estimular a paz e o desenvolvimento.
Efeito multiplicador. Relatórios da ONU mostram o efeito multiplicador do investimento no setor. Alfabetizar crianças em países de baixa renda pode tirar 171 milhões de pessoas da pobreza. Filhos de mulheres que sabem ler têm 50% de chance a mais de chegar aos 5 anos de idade do que crianças cujas mães são iletradas. Outros exemplos: cada ano de ensino formal garante a créscimo médio de 10% à renda de um indivíduo e reduz, entre os meninos, em 20% o risco de envolvimento em conflitos violentos.
Este ano, o Educate A Child ajudou a erguer escolas na zona rural e em favelas da Índia e de Bangladesh e a construir barcos-escola para garantir que crianças do subcontinente indiano possam continuar estudando na época das monções, as grandes enchentes que castigam a região todos os anos."Temos crianças no meu país que adoram estudar e durante as monções vão a nado para as escolas", diz sir Fazle Hasan Abed, criador do Comitê para o Progresso Rural de Bangladesh (Brac, na sigla em inglês) e ganhador, em 2011, do primeiro Wise Award, prêmio no valor de US$ 500 mil concebido pelo governo Catar como uma espécie de Nobel da Educação.
Nascido em uma família tradicional do país, sir Abed formou-se em Engenharia Naval na Escócia e tinha um confortável emprego na petrolífera Shell quando decidiu vender seu apartamento em Londres e voltar para um Bangladesh em ruínas, em 1971. O país tinha acabado de conseguir a independência, sofria os efeitos de um ciclone devastador que havia causado 300 mil mortes em 1970 e ainda tinha de receber 10 milhões de refugiados que migraram para a Índia durante a guerra de libertação. A Brac virou uma das maiores ONGs do mundo. Opera em 70 mil vilas, oferecendo a 110 milhões de pessoas assistência de saúde e jurídica, apoio técnico para a agricultura, crédito e ensino primário. Em 2002, expandiu sua atuação para o Afeganistão e hoje está presente em mais sete países da Ásia e da África.
Uma das prioridades do estágio inicial do Educate A Child é trabalhar com crianças em campos de refugiados. Para desenvolver o trabalho, o Catar elegeu parceiros como o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur)."Já estamos atendendo 172 mil crianças em 12 países. O Acnur investiu US$ 6 milhões e o Catar entrou com outros US$ 6 milhões", disse o ex-primeiro-ministro português António Guterrez, que dirige o Acnur.
Guterrez ressaltou a importância da xeica Mozahbint Nasser Al Missned, mulher do emir do Catar, Hamad bin Khalifa Al Thani, para o sucesso do Educate A Child. Emissária especial da Unesco para programas de educação em áreas de conflito e advocate (espécie de embaixadora) da ONU no esforço para atingir a Meta do Milênio em educação, a xeica é a grande incentivadora do investimento social feito pelo país. "O gabinete da xeica é uma grande fonte de financiamento do nosso trabalho e ela tem uma capacidade única de atrair parceiros." Guterrez acompanhou a xeica este ano em visitas a campos de refugiados como o de Kakuma, no Quênia. A escola de Kakuma é dirigida por uma ex-aluna, a refugiada somali Suad Mohamad, de 23 anos. Aplaudida de pé no Wise, Suad falou da luta para manter os estudos no assentamento, onde chegou aos 8 anos. Um dos obstáculos, durante a adolescência, foi a oposição do pai: ele queria que a filha se casasse. "Eu disse: me deixe terminar os estudos que vou trazer muito mais dinheiro para casa do que com o dote de um marido", contou.
A jovem não só terminou o ensino básico como concluiu o médio e conseguiu diploma em licenciatura, graças a uma bolsa do Acnur. Suad pensa grande. Pretende ajudar os 10 milhões de meninas que ficam longe do ensino formal no mundo por causa do preconceito em sociedades machistas como a somali. "Meu sonho é virar secretária-geral da ONU."
Principal assessor da xeica para o Educate A Child, o brasileiro Marcio Barbosa, ex-número 2 da Unesco, acredita que os objetivos do programa são factíveis. "O número mágico de US$ 6 bilhões por ano de investimento não é muito alto quando você olha para todos os atores envolvidos, governos, empresas, fundações e pessoas físicas." Até porque o Catar se dispõe a financiar boa parte desse valor. "O orçamento anual para investimento deles é de US$ 50 bilhões. Em tese, o Catar poderia bancar sozinho o programa, mas, quando você fecha parcerias e divide investimentos, desenvolve uma relação recíproca de responsabilidade."
Coube a Barbosa e ao ex-representante da Unesco no Brasil, Jorge Werthein, o contato que levou à oferta, pelo MEC, do software do Sistema Integrado de Monitoramento Execução e Controle (Simec) para ajudar na gestão do Educate A Child. Criado por técnicos do ministério, o Simec permite acompanharem tempo real gastos e resultados de todos os programas da pasta. "O Simec pode ser uma contribuição importante nessa operação complexa", disse Barbosa.
Intercâmbio. Para o brasileiro, essa é outra missão do programa: servir de ponte entre países, ajudando a divulgar boas práticas. Premiado este ano com o Wise Award, o professor indiano Madhav Chavan disse ao Estadão.edu que gostaria de conhecer experiências de alfabetização no Brasil. Criador da ONG Pratham, Chavan desenvolveu uma fórmula de baixo custo para alfabetizar crianças com dificuldades de aprendizado, apoiada basicamente no trabalho de voluntários.
A Pratham atende a 3 milhões de crianças e forma 100 mil voluntários todos os anos. "O bom de fóruns como o Wise é que eles incentivam a cooperação entre países que vivem de fato os grandes problemas da educação. É daí que podem sair as soluções", disse Chavan.
O repórter viajou para Doha a convite da organização do Wise
-
Graças ao Educate A Child, já atendemos este ano 172 mil crianças em campos de refugiados de 12 países"
António Guterrez, alto comissário das Nações Unidas para refugiados
-

Nenhum comentário:

Postar um comentário