25 de fevereiro de 2013

ROGER COHEN Um jogo sujo Londres Nenhum esporte desperta tanto ardor global quanto o futebol, mas essa paixão tem ultimamente revelado um lado sujo. Quando estive no mês passado em Israel, torcedores do Beitar, um clube de Jerusalém, estavam irritados com a possível contratação de dois jogadores muçulmanos da Tchetchênia e estenderam uma faixa com os dizeres "Beitar puro para sempre". Na mesma época, as furiosas repercussões do tumulto que matou mais de 70 pessoas em 2012 num estádio de Port Said, no Egito, continuaram tirando vidas. Penas de morte para os acusados de serem os responsáveis levaram a novos homicídios, enquanto torcedores de dois clubes importantes, o Al Ahly, do Cairo, e o El Masry, de Port Said, trocavam acusações. Semanas antes, o meio-campista germano-ganense Kevin-Prince Boateng, do Milan, abandonou o gramado em reação a um xingamento racista durante um amistoso contra outro time italiano. Ele foi seguido por seus colegas de time. O gesto de Boateng foi comparado ao de Rosa Parks ao não se levantar do seu assento num ônibus [racialmente segregado] do Estado do Alabama, nos EUA. Em outubro, na Sérvia, dois jogadores negros da seleção sub-21 da Inglaterra foram alvo de imitações de macacos, e o time acabou sendo repreendido por perder as estribeiras no final da partida. A equipe sérvia sofreu apenas uma multa branda. Tolerância zero para o racismo, como clamam as autoridades futebolísticas, é algo que não passa de uma promessa vazia. O racismo não é novidade no futebol, é claro, mas o mundo alterou o jogo. A atual onda de violência e crueldade ocorre 15 anos depois de a França ganhar a Copa do Mundo com um time de tamanha mistura afro-árabe-caribenha que Jean Marie Le Pen, então líder do partido anti-imigração Frente Nacional, queixou-se de que aquela equipe não era autenticamente francesa. Foi o triunfo do "black, blanc, beur" ("negro, branco e árabe"). Doze anos depois, na Copa do Mundo na África do Sul, surgiu um bom time alemão com figuras como Mesut Özil (muçulmano de ascendência turca), Sami Khedira (meio tunisiano) e Jerome Boateng (irmão de Kevin-Prince, com pai ganense e mãe alemã). "Minha técnica e minha intuição pela bola são o lado turco do meu jogo", comentou Özil. "A disciplina, a atitude e o 'dar sempre tudo de si' são a parte alemã." A Alemanha havia deixado para trás a visão "Volkisch" da nacionalidade -baseada na linhagem do povo alemão-, o que parecia refletir uma abertura mais ampla das mentalidades. Os limites dessa abertura agora estão claros. O tribalismo é arraigado no futebol. O clube é a identidade. É uma válvula de escape numa época de frustrações abundantes. Ele incorpora o pessoal à multidão: ninguém pode saber com certeza de qual garganta emana aquele grito de ódio. É também uma grana preta. Os dirigentes não querem ver sua franquia de bilhões de dólares ser maculada pelo racismo, mas também não querem que ela seja politizada por um movimento maciço de abandonos de campo como o de Boateng. Então eles esquivam-se e parecem fracos. Joseph Blatter, o presidente da Fifa, assumiu um discurso tortuoso após o incidente com Boateng, dizendo que há tolerância zero para o racismo, mas que o protesto do jogador não seria "a solução". Havia lhe escapado o significado político de um ídolo que se declara farto de tudo isso. O futebol, há muito tempo, é o ambiente onde o talento de crianças pobres, independentemente da sua origem, pode levá-las aos píncaros da fama e da fortuna. Zinedine Zidane, o astro da seleção francesa campeã mundial, um jogador que parecia fazer arte sem esforço, é filho de imigrantes argelinos em Marselha. Zidane tornou-se uma figura inspiradora na França. No entanto, o esporte que abre portas não pode ser o esporte do fanatismo racista. Boateng deixou um exemplo que deveria ser seguido. Se as partidas pararem quando gritos racistas começam, os torcedores vão entender o recado. O mesmo vale para os constrangidos dirigentes, que poderiam então finalmente ser mais rigorosos contra o racismo. O primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, foi um dos que ficaram indignados com a atitude da torcida do Beitar. "Não podemos aceitar tal comportamento racista", disse ele. "O povo judeu, que sofreu banimentos e expulsões, precisa representar uma luz para as nações." Isso soou bem. Mas o jogo não voltará à sua beleza -assim como a paz não vai se instalar no Oriente Médio- apenas por meio de lindas exortações.


INTELIGÊNCIA/Londres, Folha de S. Paulo, 25/2/2013

Nenhum esporte desperta tanto ardor global quanto o futebol, mas essa paixão tem ultimamente revelado um lado sujo.
Quando estive no mês passado em Israel, torcedores do Beitar, um clube de Jerusalém, estavam irritados com a possível contratação de dois jogadores muçulmanos da Tchetchênia e estenderam uma faixa com os dizeres "Beitar puro para sempre".
Na mesma época, as furiosas repercussões do tumulto que matou mais de 70 pessoas em 2012 num estádio de Port Said, no Egito, continuaram tirando vidas. Penas de morte para os acusados de serem os responsáveis levaram a novos homicídios, enquanto torcedores de dois clubes importantes, o Al Ahly, do Cairo, e o El Masry, de Port Said, trocavam acusações.
Semanas antes, o meio-campista germano-ganense Kevin-Prince Boateng, do Milan, abandonou o gramado em reação a um xingamento racista durante um amistoso contra outro time italiano. Ele foi seguido por seus colegas de time. O gesto de Boateng foi comparado ao de Rosa Parks ao não se levantar do seu assento num ônibus [racialmente segregado] do Estado do Alabama, nos EUA.
Em outubro, na Sérvia, dois jogadores negros da seleção sub-21 da Inglaterra foram alvo de imitações de macacos, e o time acabou sendo repreendido por perder as estribeiras no final da partida. A equipe sérvia sofreu apenas uma multa branda.
Tolerância zero para o racismo, como clamam as autoridades futebolísticas, é algo que não passa de uma promessa vazia.
O racismo não é novidade no futebol, é claro, mas o mundo alterou o jogo.
A atual onda de violência e crueldade ocorre 15 anos depois de a França ganhar a Copa do Mundo com um time de tamanha mistura afro-árabe-caribenha que Jean Marie Le Pen, então líder do partido anti-imigração Frente Nacional, queixou-se de que aquela equipe não era autenticamente francesa. Foi o triunfo do "black, blanc, beur" ("negro, branco e árabe").
Doze anos depois, na Copa do Mundo na África do Sul, surgiu um bom time alemão com figuras como Mesut Özil (muçulmano de ascendência turca), Sami Khedira (meio tunisiano) e Jerome Boateng (irmão de Kevin-Prince, com pai ganense e mãe alemã).
"Minha técnica e minha intuição pela bola são o lado turco do meu jogo", comentou Özil.
"A disciplina, a atitude e o 'dar sempre tudo de si' são a parte alemã."
A Alemanha havia deixado para trás a visão "Volkisch" da nacionalidade -baseada na linhagem do povo alemão-, o que parecia refletir uma abertura mais ampla das mentalidades.
Os limites dessa abertura agora estão claros.
O tribalismo é arraigado no futebol. O clube é a identidade. É uma válvula de escape numa época de frustrações abundantes. Ele incorpora o pessoal à multidão: ninguém pode saber com certeza de qual garganta emana aquele grito de ódio. É também uma grana preta.
Os dirigentes não querem ver sua franquia de bilhões de dólares ser maculada pelo racismo, mas também não querem que ela seja politizada por um movimento maciço de abandonos de campo como o de Boateng. Então eles esquivam-se e parecem fracos.
Joseph Blatter, o presidente da Fifa, assumiu um discurso tortuoso após o incidente com Boateng, dizendo que há tolerância zero para o racismo, mas que o protesto do jogador não seria "a solução".
Havia lhe escapado o significado político de um ídolo que se declara farto de tudo isso.
O futebol, há muito tempo, é o ambiente onde o talento de crianças pobres, independentemente da sua origem, pode levá-las aos píncaros da fama e da fortuna.
Zinedine Zidane, o astro da seleção francesa campeã mundial, um jogador que parecia fazer arte sem esforço, é filho de imigrantes argelinos em Marselha.
Zidane tornou-se uma figura inspiradora na França.
No entanto, o esporte que abre portas não pode ser o esporte do fanatismo racista.
Boateng deixou um exemplo que deveria ser seguido.
Se as partidas pararem quando gritos racistas começam, os torcedores vão entender o recado.
O mesmo vale para os constrangidos dirigentes, que poderiam então finalmente ser mais rigorosos contra o racismo.
O primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, foi um dos que ficaram indignados com a atitude da torcida do Beitar.
"Não podemos aceitar tal comportamento racista", disse ele.
"O povo judeu, que sofreu banimentos e expulsões, precisa representar uma luz para as nações."
Isso soou bem. Mas o jogo não voltará à sua beleza -assim como a paz não vai se instalar no Oriente Médio- apenas por meio de lindas exortações.

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