21 de outubro de 2013

Resultados do Enem refletem desigualdades comuns no país


  • Análise de dados mostra que a nota da redação está diretamente ligada à renda familiar dos candidatos
  • Quanto melhor a situação financeira e de escolaridade familiar, maior é a nota do candidato na redação
  • O GLOBO analisou informações dos candidatos do Enem 2011 que responderam ao questionário socioeconômico e fizeram a redação


FÁBIO VASCONCELLOS(EMAIL·TWITTER)
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A estudante Rayane Florêncio, de 17 anos, que deixou o emprego numa pizzaria para se dedicar ao Enem
Foto: Gustavo Miranda / Agência O Globo
A estudante Rayane Florêncio, de 17 anos, que deixou o emprego numa pizzaria para se dedicar ao Enem Gustavo Miranda / Agência O Globo
RIO - Criado para democratizar o acesso ao ensino superior no país, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) não conseguiu se esquivar das desigualdades do Brasil. Uma análise do banco de dados do Ministério da Educação (MEC), realizada pelo GLOBO, mostra que a prova vem refletindo as conhecidas diferenças socioeconômicas do país. O levantamento deixa evidente que o desempenho dos participantes está ligado a sua renda. Quanto melhor a situação financeira e de escolaridade familiar, maior é a nota do candidato na redação, principal prova do disputado processo de seleção do MEC. Consulte aqui os dados apurados.

Para chegar a essa conclusão, o jornal analisou informações de 3,87 milhões de candidatos do Enem 2011 que responderam ao questionário socioeconômico no ato da inscrição e que fizeram a prova de redação naquele ano. Esses dados são os mais recentes disponíveis em relação ao exame que se tornou a principal porta de entrada para o ensino superior no Brasil. Neste fim de semana, acontece a próxima edição do exame, que tem 7,1 milhões de inscritos.
Ao comparar renda familiar e desempenho na redação, prova que tem o maior peso no exame, percebeu-se um aumento contínuo da nota junto com a situação financeira e a escolaridade dos pais. Enquanto a nota média entre aqueles com renda de até um salário mínimo foi de 460 pontos, o grupo com renda acima de 15 salários chegou a 642 pontos. Diferença de 40%.
Na comparação entre as unidades da federação, essa disparidade é mais ampla no Piauí, onde a diferença entre a menor e a maior médias é de 50%. Santa Catarina e Amapá são os que apresentam menor discrepância: 27%.
— O Enem reproduz brutalmente as nossas desigualdades, e outros estudos que consideraram outras variáveis sociais chegaram às mesmas conclusões. O pobre não é burro, mas ele participa de um concurso com jovens que têm acesso a experiências educacionais muito mais ricas. Nesse sentido, a sociedade não se dá conta de que vivemos uma situação de cartas marcadas, que reproduz nosso padrão socioeconômico. A solução para isso não é fazer uma avaliação mais leniente com quem vem de família com baixa renda, mas melhorar a escola, pôr a questão do aprendizado no centro da atenção — diz o professor Francisco Soares, do grupo de avaliação e medidas socioeducativas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Quando as notas são avaliadas segundo a rede de ensino, as diferenças persistem. Em 2011, cerca de 1,4 milhão de alunos que fizeram a redação do Enem estavam no ensino médio. A nota média entre os candidatos de escolas estaduais (78% desse universo) foi de 486 pontos. A rede municipal alcançou 498. Já a média entre os colégios privados chegou a 612, pouco abaixo do ensino federal, com 623. A porcentagem de alunos de escolas federais no Enem, porém, está em 1,8%.
O baixo desempenho nas redes estadual e municipal é explicado também pela renda das famílias. Cerca de 80% dos estudantes das escolas estaduais e municipais que fizeram o Enem 2011 afirmaram ter renda de até dois salários mínimos. Na rede federal, esse percentual cai para 55%, e na privada é de apenas 30%.
Também há muita discrepância quando se comparam notas entre alunos de baixa e alta renda dentro da mesma rede de ensino. Nas escolas municipais, a média entre alunos com renda de até um salário é de 433 pontos, enquanto entre os de renda de mais de 15 salários é de 553 (diferença de 28%). Na rede estadual, as notas vão de 443 a 562 (27%). Na federal, de 550 a 689 (25%). E na particular, de 539 a 652 (21%).
Desistência maior na rede estadual
O coordenador de projetos da Fundação Lemann, Ernesto Martins Faria, explica que jovens de famílias com poucos recursos vivem em condições desfavoráveis que afetam o aprendizado, como, por exemplo, espaço inadequado em casa para se dedicar aos estudos, baixo acesso a livros e até mesmo um vocabulário pouco diversificado utilizado pelos pais. Para Faria, a relação entre desempenho na redação e renda familiar, contudo, deve ser vista com cautela quando se trata de alunos da rede federal.
— O patamar das notas dos alunos de baixa renda é bem mais baixo nas redes públicas estadual e municipal. Esses alunos têm um backgroundextraescolar mais desfavorável. Alunos da rede particular provavelmente têm pais mais engajados, e o gasto com educação privada, apesar da baixa renda familiar, ilustra isso. Já entre os alunos da rede federal, alguns devem ter passado por processos seletivos que são feitos em certas escolas. Para alunos que passam por processos seletivos a renda não é uma boa ilustração do background ou das oportunidades educacionais — afirma Faria.
Com poucos recursos e enfrentando situações por vezes desfavoráveis, boa parte dos alunos da rede pública desiste no meio do concurso. Pelos dados analisados pelo jornal, quanto menor a renda familiar, menor é a probabilidade de os alunos participarem da redação, aplicada no segundo dia de provas. A desistência entre os alunos na rede municipal chegou a 24%, seguida da estadual, com 19,7%. Nas escolas federais, a desistência foi de apenas 6%, patamar muito próximo da rede privada (5%).
— Esses dados revelam algo que merece uma maior atenção do poder público. O Enem gera um incentivo à participação dos alunos, porque eles querem o ensino superior. Quem faz a redação está envolvido com essa perspectiva. A desistência maior entre alunos da rede pública indica, a meu ver, uma falta de perspectiva dos alunos. Eles pensam que não poderão ser aprovados ou, caso sejam, pensam em como poderão se manter financeiramente no ensino superior. Isso tudo tem a ver com as políticas que podem ser criadas para permitir que esses jovens se dediquem aos estudos ou possam se manter durante a faculdade — observa Faria.
Falta de professores prejudica estudante
Aluna do Colégio Estadual João Alfredo, Rayane Florêncio, de 17 anos, vai fazer o Enem este ano. A moradora do bairro de Jacaré, na Zona Norte, ficou sem professor de química durante meses, e está sem professor de geografia devido à greve de profissionais da categoria nas redes estadual e municipal do Rio. Para correr atrás, entrou num cursinho pré-vestibular comunitário.
— Gostaria de estar num colégio particular para não ter esses problemas, mas não teria como pagar — conta a aluna, filha de um caminhoneiro e uma dona de casa, cujo sonho é estudar Letras na UFF. — Tenho um pouco de medo. Sei que a prova vai cobrar coisas que não aprendi.
Até agosto, Rayane trabalhava numa pizzaria à noite, para ter seu próprio dinheiro, mas isso atrapalhava demais sua preparação.
— Tinha a escola pela manhã e, depois, o cursinho das 13h às 18h. Saía correndo para o trabalho, onde ficava até meia-noite. Era cansativo. Abri mão do trabalho para focar no Enem — desabafa.
No estudo feito pelo GLOBO, também foram comparadas as médias por estados. Como a participação no Enem é voluntária, os dados servem apenas para ilustrar o desempenho dos alunos que fizeram as provas, e não para explicar disparidades socieconômicas nos estados como um todo. No Piauí, onde a discrepância entre as notas de alunos com baixa e alta renda chega a 50%, os estudantes de famílias que vivem com até um salário mínimo tiveram média da redação de 450 pontos, enquanto os com renda acima de 15 salários alcançaram 676. Em Mato Grosso do Sul, a disparidade foi de 46%. As menores diferenças foram no Amapá e em Santa Catarina (ambos com 27%), seguido de São Paulo (33%).
O impacto da situação socioeconômica no rendimento dos alunos foi analisado pelo doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) Rodrigo Travitzki. Na pesquisa, feita para defesa da sua tese este ano, ele comparou a média das escolas no Enem e concluiu que mais de 80% das variações são explicadas por fatores que não podem ser controlados pelas escolas, como renda e escolaridade familiar.
— Esse dado revela que a educação de um país não pode ser muito melhor que o país. As escolas sozinhas não resolvem. Precisamos melhorar as escolas, mas precisamos também reduzir nossas desigualdades. Minha tese procurou discutir esse tema, porque não adianta focar no ranking das melhores escolas do Enem. Acaba virando marketing das escolas, quando sabemos que elas, sozinhas, pouco podem fazer.
Presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão do MEC responsável pela aplicação do Enem, Luiz Claudio Costa reconhece que o exame, por si só, não vai melhorar os rumos da educação. Ele sabe das discrepâncias entre as notas de alunos de baixa e alta renda familiar.
— Educação é maratona. É preciso transformar toda uma realidade. Nossa historia é de exclusão, e o Brasil vem mudando isso, colocando jovens nas escolas. O Enem, assim como as cotas, é uma ferramenta no processo. Antigamente, dois ou três vestibulares influenciavam muito no ensino, e só dialogavam com escolas particulares. O Enem promove diálogo com a escola pública. Mas não é uma mudança rápida.


   em http://oglobo.globo.com/educacao/resultados-do-enem-refletem-desigualdades-comuns-no-pais-10445682#ixzz2iNEsYeTl 

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