24 de dezembro de 2014

Para psicanalistas, é preciso defender memória da ditadura

Revista de instituição de SP dedica número a efeitos do regime

ELEONORA DE LUCENADE SÃO PAULO, 24/12/2014

"Está mais do que na hora de o país ter um dia da lembrança ou da memória em homenagem às vítimas da ditadura. É preciso uma ritualização coletiva, uma simbolização", diz o psicanalista Renato Mezan. Com a colega Maria Auxiliadora Arantes, ele sugere que o relatório da Comissão Nacional da Verdade seja tema em salas de aula e motive livros didáticos, filmes, peças e séries de TV.
Na opinião dos psicanalistas, o documento, que mostra como o Estado foi estruturado para prender, torturar e eliminar os opositores, precisa ser disseminado, de forma sistemática e palatável, a fim de impedir que os crimes que relata voltem a acontecer.
Eles falam a propósito da nova edição da "Percurso", publicação do Instituto Sedes Sapientiae, que reúne textos de psicanalistas sobre efeitos da ditadura nos indivíduos e na sociedade. É a partir dessas reflexões que eles apontam a necessidade de ações para que o relatório da CNV "não caia na vala comum".
"Quando acontece uma tragédia dessas e ela não é processada e não se fala respeito, fica um buraco, uma coisa não resolvida que vai assombrar as gerações futuras. Na Alemanha isso ocorreu", afirma Mezan, 64, coordenador editorial da revista.
Para ele, o texto da CNV não cicatriza feridas. Ao contrário, tem um salutar "poder cutucante". "Ele abre a ferida com a finalidade de purgar. Ela estava coberta, mas embaixo estava cheio de pus. O relatório lanceta isso", diz.
Na avaliação de Arantes, 74, o impacto do relatório pode ser "devastador", se a sociedade se indignar sobre o que ocorreu e exigir que os militares contem onde estão os desaparecidos. "É uma responsabilidade nossa, da sociedade, não é um problema das famílias", declara.
Autora de "Tortura" (Casa do Psicólogo, 2013), ela foi presa com seus dois filhos no dia da decretação do AI-5, 13 de dezembro de 1968, quando era militante da AP (Ação Popular) em Alagoas.
Ela destaca que, como "a crueldade faz parte do ser humano", é preciso fazer "uma negociação permanente para que não haja tortura. Apesar de ser crime no Brasil, ela segue". Cita as rotinas em prisões e as violências que atingem negros e pobres no país --temas também explorados pela "Percurso".
Mezan e Arantes afirmam que a discussão do relatório pode provocar redução de tortura nas cadeias --se o texto for integrado à formação de policiais e houver engajamento da sociedade.
O psicanalista lembra que a formação social do Brasil é "autoritária e excludente, gerando privilégios e vida boa para a minoria dominante".
"Levamos 300 anos para abolir a escravidão. O golpe de 1964 se inscreve no main- stream': foi mais um dos episódios de exclusão e autoritarismo." Na opinião de Mezan, "o relatório é parte de um movimento que se opõe a esse veio majoritário e dominante, profundamente infiltrado na cabeça das pessoas, nas suas atitudes. Isso exige ação, não deixar como está para ver como fica".

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